Por que acreditamos em boatos?
Por que acreditamos em boatos?
Blog Ciência & Matemática, do jornal O Globo, publica artigo de
Ulysses Paulino de Albuquerque, professor do Centro de Biociências da
Universidade Federal de Pernambuco
23/10/2018
No ano de 1975 em Recife, Pernambuco, a população local estava
extremamente abalada pelas constantes enchentes que acometiam a cidade desde o
século 17. Recife, por ser entrecortada por rios, riachos e córregos, era
extremamente vulnerável a inundações. É nesse contexto que o início da década
de 1970 vem acompanhado de inúmeros prejuízos materiais decorrentes desses
alagamentos. Lembro-me de minha sogra, moradora desde sempre do bairro do
Arruda, falando da enchente que deixou a sua casa com água até pelo menos
metade das paredes. O desespero de ter de sair correndo da casa, durante a
madrugada, apenas com a roupa do corpo e carregando os filhos ainda muito
pequenos, dentre os quais estava minha esposa…
Não é difícil se colocar no lugar dos moradores da cidade para sentir a
angústia e o medo de que novas enchentes destruíssem seu patrimônio ou, pior,
levassem a fatalidades. Então, em 1973, o governo do estado de Pernambuco
construiu a barragem de Tapacurá, que possuía uma capacidade para abarcar cerca
de 94 milhões de metros cúbicos de água. A construção dessa barragem veio com a
esperança de redução das cheias. Assim, foi ainda em meio à recuperação da
última enchente, no ano de 1975, que surgiu a notícia do rompimento da barragem
de Tapacurá. Dá para imaginar o desespero das pessoas nas ruas? Alguns relatos
evidenciam pessoas desesperadas correndo pelo centro da cidade e chorando
inconsoláveis, esperando Recife, a Veneza brasileira, submergir nas águas e
levar com ela milhares de pessoas. Seria uma grande tragédia se não se tratasse
de um simples boato ou, como nós chamamos hoje em dia esse tipo de
notícia, fake news.
Um boato pode causar muitos estragos! Na ocasião, ouvi de amigos que
algumas pessoas, inclusive, enfartaram e/ou morreram de susto. Isso deveria
servir como lição para nunca mais cairmos no conto das fake news. Só que
não! Em tempos de internet, esse mesmo boato voltou no ano de 2011, provocando
mais desespero. Considerando como essas notícias facilmente se disseminam nas
redes sociais, fico me perguntando quanto tempo demorou para que a notícia
verdadeira chegasse a todas as pessoas. Além de publicações na internet,
aparecem, vez ou outra, áudios em grupos do WhatsApp alertando sobre uma
iminente greve da polícia militar ou mesmo sobre o mais recente medo dos
brasileiros: a greve dos caminhoneiros. Então, por que ainda acreditamos
em fake news?
Muitos cientistas fazem, hoje mais do que nunca, esse mesmo
questionamento. São pesquisadores de diferentes áreas de conhecimento que
tentam entender esse fenômeno, como biólogos, psicólogos e antropólogos. Há
pelo menos uma explicação que particularmente acho interessante e que se insere
em um dos meus campos de interesse: trata-se da evolução das culturas. As
culturas transformam-se por intermédio de diferentes processos e mecanismos. Ao
longo do tempo, as culturas podem mudar, incorporando novas crenças e ideias e
extinguindo outras. Extremamente importante não só para a transformação, mas
também para a manutenção de uma cultura, é a transmissão de informação entre os
indivíduos que formam uma sociedade. Somos constantemente levados a crer que
aprendemos o conhecimento básico sobre dada cultura com nossos pais, mas não é
bem assim. Aprendemos também com amigos, professores, pessoas a quem atribuímos
algum status, pessoas mais velhas e pessoas que não são nossos parentes. O
que aprendemos, mostram muitos estudos, também depende do tipo de informação
veiculada. Algumas pesquisas indicam, por exemplo, que tendemos a aprender
valores religiosos por meio dos integrantes de nossas famílias muito mais do
que por meio de outras fontes.
Pois bem, durante a evolução de nossa espécie no planeta, inúmeros
processos psicológicos também começaram a ser programados em nossos
maravilhosos e complexos cérebros. Pesquisas científicas realizadas em vários
países acumulam evidências de que tendemos a copiar informações de pessoas de
prestígio, mesmo que tais informações não guardem relação com o prestígio
dessas pessoas – nosso cérebro parece ignorar isso. Um exemplo bem simples disso
no dia a dia pode ser verificado nas campanhas publicitárias. É comum tais
campanhas usarem pessoas famosas para fazer propaganda de produtos que não têm
vínculo algum com a profissão dessas pessoas. É o caso de colocar um jogador
famoso de futebol para fazer comercial de creme dental ou de roupa íntima
feminina.
Copiar informações e aprender com os outros é muito mais vantajoso do
que criarmos, por nós mesmos, a solução para um problema. Nossa mente está
praticamente programada para aprender com os outros. Acontece que, muitas
vezes, e isso é um risco que corremos sempre, podemos aceitar informações
falsas ou até mesmo perigosas. Um mecanismo automático de nossa mente prevê
que, de forma geral, acolhemos e transmitimos informações minimamente plausíveis.
Ou seja, tendemos a rejeitar informações e relatos que se desviam muito de
nossas ideias e percepções. Essa é uma possível explicação para a grande
disseminação das fake news. Ora, para o povo do Recife, castigado pelas
enchentes, soou extremamente plausível uma nova enchente de proporções
calamitosas. Entretanto, não acho que habitantes do deserto acreditariam nessa
mesma notícia! O mesmo acontece quando recebemos em nosso Facebook a
notícia de que determinado político do qual não gostamos é investigado por
corrupção. Ora, se deixarmos nossos mecanismos automáticos atuarem, iremos
compartilhar essa informação, ainda mais se vier de uma pessoa que respeitamos;
nesse caso, o estrago estará feito. Esse acolhimento de informações, que
atendem as nossas expectativas, mesmo que não tenhamos certeza de sua
veracidade, é chamado de viés de confirmação.
Os estudos
científicos que mencionei começam a revelar um pouco mais da natureza humana,
e, como um dos papéis da ciência é melhorar a nossa qualidade de vida e o nosso
entendimento do mundo, agir com responsabilidade nesses tempos de redes sociais
torna-se essencial. Quando refletimos sobre que dados estamos acolhendo em
nossas vidas e sobre o que repassamos, temos o poder de manter em equilíbrio a
nossa existência, sem os tormentos de sofrer por uma mentira ou pela culpa da
irresponsabilidade de ter estragado ou comprometido outras vidas humanas.
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