quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Por que acreditamos em boatos?

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Por que acreditamos em boatos?

Blog Ciência & Matemática, do jornal O Globo, publica artigo de Ulysses Paulino de Albuquerque, professor do Centro de Biociências da Universidade Federal de Pernambuco

23/10/2018
No ano de 1975 em Recife, Pernambuco, a população local estava extremamente abalada pelas constantes enchentes que acometiam a cidade desde o século 17. Recife, por ser entrecortada por rios, riachos e córregos, era extremamente vulnerável a inundações. É nesse contexto que o início da década de 1970 vem acompanhado de inúmeros prejuízos materiais decorrentes desses alagamentos. Lembro-me de minha sogra, moradora desde sempre do bairro do Arruda, falando da enchente que deixou a sua casa com água até pelo menos metade das paredes. O desespero de ter de sair correndo da casa, durante a madrugada, apenas com a roupa do corpo e carregando os filhos ainda muito pequenos, dentre os quais estava minha esposa…
Não é difícil se colocar no lugar dos moradores da cidade para sentir a angústia e o medo de que novas enchentes destruíssem seu patrimônio ou, pior, levassem a fatalidades. Então, em 1973, o governo do estado de Pernambuco construiu a barragem de Tapacurá, que possuía uma capacidade para abarcar cerca de 94 milhões de metros cúbicos de água. A construção dessa barragem veio com a esperança de redução das cheias. Assim, foi ainda em meio à recuperação da última enchente, no ano de 1975, que surgiu a notícia do rompimento da barragem de Tapacurá. Dá para imaginar o desespero das pessoas nas ruas? Alguns relatos evidenciam pessoas desesperadas correndo pelo centro da cidade e chorando inconsoláveis, esperando Recife, a Veneza brasileira, submergir nas águas e levar com ela milhares de pessoas. Seria uma grande tragédia se não se tratasse de um simples boato ou, como nós chamamos hoje em dia esse tipo de notícia, fake news.
Um boato pode causar muitos estragos! Na ocasião, ouvi de amigos que algumas pessoas, inclusive, enfartaram e/ou morreram de susto. Isso deveria servir como lição para nunca mais cairmos no conto das fake news. Só que não! Em tempos de internet, esse mesmo boato voltou no ano de 2011, provocando mais desespero. Considerando como essas notícias facilmente se disseminam nas redes sociais, fico me perguntando quanto tempo demorou para que a notícia verdadeira chegasse a todas as pessoas. Além de publicações na internet, aparecem, vez ou outra, áudios em grupos do WhatsApp alertando sobre uma iminente greve da polícia militar ou mesmo sobre o mais recente medo dos brasileiros: a greve dos caminhoneiros. Então, por que ainda acreditamos em fake news?
Muitos cientistas fazem, hoje mais do que nunca, esse mesmo questionamento. São pesquisadores de diferentes áreas de conhecimento que tentam entender esse fenômeno, como biólogos, psicólogos e antropólogos. Há pelo menos uma explicação que particularmente acho interessante e que se insere em um dos meus campos de interesse: trata-se da evolução das culturas. As culturas transformam-se por intermédio de diferentes processos e mecanismos. Ao longo do tempo, as culturas podem mudar, incorporando novas crenças e ideias e extinguindo outras. Extremamente importante não só para a transformação, mas também para a manutenção de uma cultura, é a transmissão de informação entre os indivíduos que formam uma sociedade. Somos constantemente levados a crer que aprendemos o conhecimento básico sobre dada cultura com nossos pais, mas não é bem assim. Aprendemos também com amigos, professores, pessoas a quem atribuímos algum status, pessoas mais velhas e pessoas que não são nossos parentes. O que aprendemos, mostram muitos estudos, também depende do tipo de informação veiculada. Algumas pesquisas indicam, por exemplo, que tendemos a aprender valores religiosos por meio dos integrantes de nossas famílias muito mais do que por meio de outras fontes.
Pois bem, durante a evolução de nossa espécie no planeta, inúmeros processos psicológicos também começaram a ser programados em nossos maravilhosos e complexos cérebros. Pesquisas científicas realizadas em vários países acumulam evidências de que tendemos a copiar informações de pessoas de prestígio, mesmo que tais informações não guardem relação com o prestígio dessas pessoas – nosso cérebro parece ignorar isso. Um exemplo bem simples disso no dia a dia pode ser verificado nas campanhas publicitárias. É comum tais campanhas usarem pessoas famosas para fazer propaganda de produtos que não têm vínculo algum com a profissão dessas pessoas. É o caso de colocar um jogador famoso de futebol para fazer comercial de creme dental ou de roupa íntima feminina.
Copiar informações e aprender com os outros é muito mais vantajoso do que criarmos, por nós mesmos, a solução para um problema. Nossa mente está praticamente programada para aprender com os outros. Acontece que, muitas vezes, e isso é um risco que corremos sempre, podemos aceitar informações falsas ou até mesmo perigosas. Um mecanismo automático de nossa mente prevê que, de forma geral, acolhemos e transmitimos informações minimamente plausíveis. Ou seja, tendemos a rejeitar informações e relatos que se desviam muito de nossas ideias e percepções. Essa é uma possível explicação para a grande disseminação das fake news. Ora, para o povo do Recife, castigado pelas enchentes, soou extremamente plausível uma nova enchente de proporções calamitosas. Entretanto, não acho que habitantes do deserto acreditariam nessa mesma notícia!  O mesmo acontece quando recebemos em nosso Facebook a notícia de que determinado político do qual não gostamos é investigado por corrupção. Ora, se deixarmos nossos mecanismos automáticos atuarem, iremos compartilhar essa informação, ainda mais se vier de uma pessoa que respeitamos; nesse caso, o estrago estará feito. Esse acolhimento de informações, que atendem as nossas expectativas, mesmo que não tenhamos certeza de sua veracidade, é chamado de viés de confirmação.
Os estudos científicos que mencionei começam a revelar um pouco mais da natureza humana, e, como um dos papéis da ciência é melhorar a nossa qualidade de vida e o nosso entendimento do mundo, agir com responsabilidade nesses tempos de redes sociais torna-se essencial. Quando refletimos sobre que dados estamos acolhendo em nossas vidas e sobre o que repassamos, temos o poder de manter em equilíbrio a nossa existência, sem os tormentos de sofrer por uma mentira ou pela culpa da irresponsabilidade de ter estragado ou comprometido outras vidas humanas.


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