Não consigo contar quantas vezes
eu já ouvi uma versão dessa pergunta desde que me mudei para o Rio.
Depois de décadas de decepções políticas e anos de "o PT inventou a
corrupção", parece um mantra quase religioso para a maioria da
população: Brasil está quebrado, mas lá fora as coisas são simplesmente
ótimas. A retomada da migração de brasileiros para o exterior parece
comprovar a tese.
Quando estou cansado respondo "ah, aqui é legal também". Mas
nos raros momentos em que estou bem humorado e suficientemente cafeinado,
tenho uma resposta pronta que muitas vezes até consegue rachar a certeza
do interlocutor:
Olha, o Brasil tem um problema com corrupção, sim. Lava Jato, Cabral,
Cunha, grandes e pequenos roubos aqui e ali, sem dúvidas. E isso atinge a
vida de todo brasileiro. Mas os Estados Unidos é ainda mais corrupto, com
um impacto ainda mais nefasto na vida das pessoas e no mundo em geral —
só que a corrupção lá tipicamente é mais sofisticada (e, por isso, mais
eficaz).
No Brasil, a maioria dos grandes escândalos revelados recentemente têm
mais ou menos o mesmo roteiro: faz um contrato superfaturado → Paga uma
porcentagem em propina para o governante → Pronto! Lucro!
É um esquema muito óbvio que pode gerar milhões. Nos EUA, isso acontece
também, mas o sistema não permite que seja uma regra, pois é preciso
manter a aparência de legitimidade. Este mês faz 10 anos desde o início
da crise financeira de 2008, ou, como eu chamo, o maior golpe na história do mundo. E foi
montado e executado nos EUA.
- Bancos pequenos ofereceram empréstimos
habitacionais para pessoas que nunca dariam conta de pagá-los, sem
nem verificar se as pessoas tinham renda.
- Os títulos desses empréstimos foram revendidos
para bancos maiores que não verificavam sua qualidade.
- Depois, bancos grandes embalaram milhares destes
títulos e criaram um novo tipo de produto bancário para
investimentos, revendendo isso às pessoas.
- Eles pressionaram as agências de classificação de
risco a dar uma nota boa aos produtos (ou perderíam os bancos como
clientes).
- Com o selo de qualidade, revenderam os bolões de
empréstimos de financiamento habitacional na bolsa como investimentos
extremamente seguros.
- Os bancos acumularam centenas de bilhões com
estes investimentos, mas assim que perceberam que o golpe estava
chegando ao fim e a bolha ia estourar, correram para vender o que
puderam a qualquer preço para qualquer azarado que ainda não
soubesse que o jogo estava acabando (99% das pessoas).
- Assim, liquidaram uma grande quantidade desses
bens tóxicos de suas contas e tinham seguro para garantir o resto.
Terceirzaram criminosamente todo o prejuízo.
Mas não foi suficiente. Vários
bancos e suas seguradoras entraram em crise. O primeiro banco a cair foi
Lehman Brothers, o segundo foi Bear Sterns e o governo teve que entrar
com bilhões para resgatar o resto e evitar o colapso da indústria
inteira.
Durante a fraude, todos os envolvidos no processo ganhavam comissões por
cada transação, o que os incentivava a vender cada vez mais. Depois que a
bomba estourou, descobrimos que muita gente sabia que ia dar merda, mas
ninguém quis dar ouvidos, já que estavam ganhando rios de dinheiro na época.
E essa bomba acabou tendo efeitos catastróficos, entre eles:
- US$14 trilhões da economia mundial pegou fogo e *poof*,
desapareceu
- Corroeu 3.5% do PIB mundial
- Gerou 34 milhões de desempregados mundialmente
- Milhões de americanos perderam suas casas por não conseguir
pagar o financiamento
- O número de suicídios cresceu assustadoramente
- Necessitou de trilhões em ajuda (bailouts)
governamental
- Expandiu a desigualdade social
- Provocou ou exacerbou rachas no tecido social e
político de vários países
O custo total, na verdade, ainda
é incalculável, mas tem gente que argumenta que esta crise mundial provocou a onda política anti-establishment
mundial de que o Srs. Bolsonaro e Trump fazem parte e até causou o Brexit.
Mas uma coisa é clara: ninguém foi preso. Ninguém. A maioria dos principais banqueiros
envolvidos sequer perderam seus empregos e seus colegas foram chamados
para limpar a bagunça que fizeram da forma mais conveniente para eles. As
raposas limparam o galinheiro.
Dez anos depois, ninguém teve que admitir culpa criminal; os bancos,
juntos com a administração de Trump, estão correndo para desmontar as
reformas mequetrefes feitas para prevenir a próxima crise; executivos
continuam ganhando bônus absurdos; bancos continuam oferecendo
empréstimos de qualidade duvidosa. Ninguém aprendeu nada.
Isso, meus amigos, é corrupção de primeira linha. Isso é corrupção
legalizada, o tipo que mais rende. E o sistema americano é desenhado para
facilitar e perpetuar esse tipo de golpe. É corrupção 2.0 (ou 3.0, perdi
a conta já).
Brasileiros têm muita razão em ficarem indignados com desgovernança,
pilantragem, canalhice etc. Compartilho o sentimento. Mas não se engane
em acreditar que o Brasil está ganhando o campeonato da corrupção. Aliás,
esta semana a Libéria anunciou que "perdeu" 5% do seu
PIB (estão provavelmente nos bolsos de seus
políticos).
Tem corruptos em todo canto, para todos os gostos. A pergunta-chave é se,
depois de serem desmascarados, o país e o sistema têm a força e vontade
para punir e se reformar. Nos EUA, aparentemente, a resposta é não. Além
disso, políticos como Trump conseguiram capitalizar o caos enquanto só
pioram a situação. No Brasil, a corrupção também gerou seus candidatos de
respostas fáceis, rápidas e violentas. A gente vai descobrir em algumas
semanas se o povo acha que eles são a solução. Talvez é melhor você jair
se acostumando…
Editor geral
Fonte: The Intercept Brasil, 22/09/2018
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