Quais são os malucos perigosos?
Quais são os malucos
perigosos?
Contardo
Calligaris*
Nove de dez assassinos em massa possuem
uma história pregressa de violência contra mulheres
·
22.fev.2018
Mais
uma chacina nos EUA. Nikolas Cruz, 19, expulso de um colégio
de Parkland, Flórida, foi para sua antiga escola com um rifle e matou 17
pessoas —alunos e professores.
Como remédio à repetição aterradora de
episódios como esse, exige-se mais controle na venda de armas, sobretudo aos
"malucos", que, dizem, não deveriam ter acesso às armas. Entendo,
mas"¦
1) Em tese, nos EUA, quando alguém compra
arma numa loja, seus antecedentes de doença mental são verificados, mas a
verificação é falha: o próprio Nikolas Cruz tinha sido cliente dos serviços de
saúde mental, mas a informação não apareceu quando ele comprou seu rifle.
2) Nem todos os que sofrem de transtornos
mentais recorrem aos serviços de saúde --muitos, portanto, não seriam
identificados.
Mesmo assim, o presidente Trump, agora,
fala na constituição de um banco de dados nacional de pacientes
da saúde mental. Engraçado, visto que, na semana passada, ele revogara a
disposição de Obama que exigia a verificação de antecedentes em saúde mental
para compradores de armas. Engraçado, mas nada surpreendente: Trump não segue
opiniões fundamentadas, ele se baseia em seu desejo de ser gostado —e decide
segundo quem grita mais alto no momento.
Seja como for, é urgente considerar que
1) sem dúvida, há transtornos mentais específicos que podem predispor alguém à
violência indiscriminada, 2) mas as chances de um paciente ou ex-paciente de
serviços de saúde mental se tornar um assassino em massa são as mesmas de outro
indivíduo que nunca se tratou por problema mental algum.
Listar pacientes de serviços de saúde
mental (nos EUA, um adulto em cada cinco) como "perigosos" é
discriminatório e, sobretudo, perigoso: quantos deixarão de procurar tratamento
por causa da lista negra?
A psiquiatra Liza Gold editou o ótimo
"Gun Violence and Mental Illness", (Violência pelas armas
e doença mental), Amer. Psychiatric Pub, 2015. Numa entrevista do ano passado
(após um assassinato em massa no Texas), ela salientava que, para identificar
preventivamente os assassinos em massa, é melhor não considerar o critério de
eles terem sido clientes do sistema de saúde mental e procurar os elementos
biográficos e psíquicos que têm em comum. Por exemplo, nove de dez assassinos em
massa têm uma história pregressa de violência contra mulheres, praticada ou
ameaçada.
O próprio Cruz, aliás, tinha abusado
fisicamente de sua ex-namorada e estava assediando uma menina pela qual ele se
interessava.
O retrato falado do assassino em massa
não é um paciente dos serviços de saúde mental, mas um expulso ou excluído que
culpa uma mulher que não o quer (e na qual ele bate). Seria bom revisar a velha
ideia segundo a qual as mulheres, frágeis, aguentam mal uma recusa, enquanto
para os homens, fortes, tanto faz. A coisa é mais complexa"¦
Agora, existem, sim, alguns quadros
clínicos para os quais eu não venderia armas.
Nesses dias, o senador Ted Cruz (sem
parentesco com o assassino) comentou: "A gente se perguntará: havia sinais
de doença mental? Não poderíamos ter intervindo antes?".
Imagino Ted Cruz colocando essa pergunta
diante da desolação que um post qualquer do presidente poderia produzir um dia
desses.
A gente não quer deixar um rifle na mão
de um ex-paciente do sistema de saúde mental. Mas deixamos o Exército e o
arsenal nuclear dos EUA nas mãos de alguém que parece sofrer de uma patologia
narcisista óbvia e descomunal.
No fim do ano passado, 27 psiquiatras e
profissionais da saúde mental publicaram "The Dangerous Case
of Donald Trump" (O caso perigoso de D.T.), St. Martin Press.
Não traz nada de muito surpreendente: o comportamento de Trump confirma uma personalidade narcisista
devorante. E certamente é problemático colocar qualquer poder nas mãos de
alguém que, por efeito de sua personalidade, só consegue governar para ser
gostado ou para se vingar de quem não gosta dele.
Quando o livro saiu, discutiu-se muito
para saber se os autores tinham o direito de diagnosticar um homem público. A
questão é delicada, e voltarei a ela, mas, convenhamos: tudo bem, indivíduos
que sofrem ou sofreram de uma patologia mental não podem comprar rifle ou
pistola. Mas vamos considerar que o Exército e o arsenal nuclear dos EUA também
são armas, certo?
*Contardo Calligaris - Italiano, é
psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Reflete sobre cultura,
modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e
ordinárias).
FONTE: Aqui
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