sábado, 24 de fevereiro de 2018

Quais são os malucos perigosos?

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Quais são os malucos perigosos?

 

Contardo Calligaris*

 

Nove de dez assassinos em massa possuem uma história pregressa de violência contra mulheres

·            
22.fev.2018

Mais uma chacina nos EUA. Nikolas Cruz, 19, expulso de um colégio de Parkland, Flórida, foi para sua antiga escola com um rifle e matou 17 pessoas —alunos e professores.
Como remédio à repetição aterradora de episódios como esse, exige-se mais controle na venda de armas, sobretudo aos "malucos", que, dizem, não deveriam ter acesso às armas. Entendo, mas"¦
1) Em tese, nos EUA, quando alguém compra arma numa loja, seus antecedentes de doença mental são verificados, mas a verificação é falha: o próprio Nikolas Cruz tinha sido cliente dos serviços de saúde mental, mas a informação não apareceu quando ele comprou seu rifle.
2) Nem todos os que sofrem de transtornos mentais recorrem aos serviços de saúde --muitos, portanto, não seriam identificados.
Mesmo assim, o presidente Trump, agora, fala na constituição de um banco de dados nacional de pacientes da saúde mental. Engraçado, visto que, na semana passada, ele revogara a disposição de Obama que exigia a verificação de antecedentes em saúde mental para compradores de armas. Engraçado, mas nada surpreendente: Trump não segue opiniões fundamentadas, ele se baseia em seu desejo de ser gostado —e decide segundo quem grita mais alto no momento.
Seja como for, é urgente considerar que 1) sem dúvida, há transtornos mentais específicos que podem predispor alguém à violência indiscriminada, 2) mas as chances de um paciente ou ex-paciente de serviços de saúde mental se tornar um assassino em massa são as mesmas de outro indivíduo que nunca se tratou por problema mental algum.
Listar pacientes de serviços de saúde mental (nos EUA, um adulto em cada cinco) como "perigosos" é discriminatório e, sobretudo, perigoso: quantos deixarão de procurar tratamento por causa da lista negra?
A psiquiatra Liza Gold editou o ótimo "Gun  Violence  and Mental Illness", (Violência pelas armas e doença mental), Amer. Psychiatric Pub, 2015. Numa entrevista do ano passado (após um assassinato em massa no Texas), ela salientava que, para identificar preventivamente os assassinos em massa, é melhor não considerar o critério de eles terem sido clientes do sistema de saúde mental e procurar os elementos biográficos e psíquicos que têm em comum. Por exemplo, nove de dez assassinos em massa têm uma história pregressa de violência contra mulheres, praticada ou ameaçada.
O próprio Cruz, aliás, tinha abusado fisicamente de sua ex-namorada e estava assediando uma menina pela qual ele se interessava.
O retrato falado do assassino em massa não é um paciente dos serviços de saúde mental, mas um expulso ou excluído que culpa uma mulher que não o quer (e na qual ele bate). Seria bom revisar a velha ideia segundo a qual as mulheres, frágeis, aguentam mal uma recusa, enquanto para os homens, fortes, tanto faz. A coisa é mais complexa"¦
Agora, existem, sim, alguns quadros clínicos para os quais eu não venderia armas.
Nesses dias, o senador Ted Cruz (sem parentesco com o assassino) comentou: "A gente se perguntará: havia sinais de doença mental? Não poderíamos ter intervindo antes?".
Imagino Ted Cruz colocando essa pergunta diante da desolação que um post qualquer do presidente poderia produzir um dia desses.
A gente não quer deixar um rifle na mão de um ex-paciente do sistema de saúde mental. Mas deixamos o Exército e o arsenal nuclear dos EUA nas mãos de alguém que parece sofrer de uma patologia narcisista óbvia e descomunal.
No fim do ano passado, 27 psiquiatras e profissionais da saúde mental publicaram "The  Dangerous Case of  Donald  Trump" (O caso perigoso de D.T.), St. Martin Press. Não traz nada de muito surpreendente: o comportamento de Trump confirma uma personalidade narcisista devorante. E certamente é problemático colocar qualquer poder nas mãos de alguém que, por efeito de sua personalidade, só consegue governar para ser gostado ou para se vingar de quem não gosta dele.
Quando o livro saiu, discutiu-se muito para saber se os autores tinham o direito de diagnosticar um homem público. A questão é delicada, e voltarei a ela, mas, convenhamos: tudo bem, indivíduos que sofrem ou sofreram de uma patologia mental não podem comprar rifle ou pistola. Mas vamos considerar que o Exército e o arsenal nuclear dos EUA também são armas, certo?

*Contardo Calligaris - Italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias).

FONTE: Aqui

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