Discurso feminista normaliza violência contra prostitutas, diz líder de grupo
Discurso feminista normaliza violência contra prostitutas,
diz líder de grupo
FERNANDA MENA
DE SÃO PAULO
14/08/2017
É contra parte do movimento feminista que, paradoxalmente, as
trabalhadoras do sexo se mobilizam.
"Elas se acham no direito de falar em nosso nome, nos tratam
como se fossemos crianças ingênuas e vulneráveis, o que nos expõe mais ao
perigo. Para mim, isso é o oposto do feminismo", reclama a sueca Pye
Jakobsson, 48, presidente da Global Network of Sex Work Projects.
A organização internacional reúne mais de 200 entidades de
prostitutas de 71 países em prol da regulamentação desta atividade e de seu
entorno, hoje criminalizado em boa parte do mundo.
Segundo Pye –uma profissional do sexo na ativa–, ao propagar
narrativas de que prostitutas são exploradas, abusadas e estupradas, essas
feministas disseminam a noção de que essas práticas, de tão comuns, são
aceitáveis.
Ela é especialmente crítica ao modelo sueco, que criminaliza
clientes, agenciadores e donos de estabelecimentos (ou mesmo de apartamentos)
em que o comércio de sexo ocorre, empurrando os trabalhadores do ramo para a
clandestinidade. No Brasil, dois projetos de lei propõem abordagens opostas
para o setor, um deles baseado no mesmo modelo (leia abaixo).
Folha - Por que alguém se torna um trabalhador
sexual?
Pye Jakobsson - Porque é uma solução viável para o quebra-cabeças da vida dessas
pessoas, seja para poder cuidar dos filhos, ter dinheiro suficiente para
estudos ou recursos extras para manter uma mãe idosa. É trabalho dos sonhos?
Provavelmente não. É o que sonharam ser quando eram crianças? Duvido.
Então é uma opção para quem faltaram opções?
Este é um pensamento equivocado. As pessoas fazem diferentes
escolhas para chegar o mais próximo possível da vida que querem ter. E, para
algumas pessoas, isso envolve trabalho sexual. Muita gente não escolheu a área
em que atua. Mas, quando o trabalho é sexual, a discussão toma outro rumo.
Mas porque uma mulher escolheria o trabalho
sexual a outra atividade que não exija qualificação formal, como ser garçonete,
por exemplo?
Em primeiro lugar porque paga muito melhor (risos). E porque o
trabalho sexual permite grande liberdade na administração do seu tempo. Você
pode trabalhar numa casa noturna e ter um horário fixo, mas se isso não couber
na sua vida, sempre há outra casa, outro bar, outro site.
É um trabalho associado a submissão,
objetificação e silêncio. O quanto disso é verdade?
Acho engraçado que aqueles que mais nos tratam como objetos não
são nossos clientes, mas os que falam sobre nós, especialmente alguns círculos
feministas.
Sou feminista, mas há ativistas que falam que somos objetos,
penetradas por todo lado por homens, exploradas, abusadas, blá-blá-blá. Há um
tanto de moralidade nisso e nos limites que querem impor ao que a mulher pode
fazer com seu corpo e sexualidade.
Alguns podem imaginar que quem paga pode fazer o que quiser
conosco, mas tudo é negociado. Feministas radicais difundem essa ideia e, com
isso, nos colocam em perigo.
Como assim?
É muito ofensivo quando falam de nós como crianças em perigo,
vítimas, abusadas, estupradas, espancadas. Corpos à mercê da violência dos
homens. Isso nos coloca em perigo porque, se é dito reiteradamente que somos
estupradas o tempo todo, então deixa de ser tão grave nos estuprar. Vira uma
profecia.
Essas mulheres se rogam o direito de falar em nosso nome e decidir
o que é bom para nós. Para mim, isso não se parece com feminismo, mas com o
patriarcado que elas dizem combater. Como afirmar "meu corpo, minhas
regras", excluindo daí as mulheres que são trabalhadoras sexuais? Esse
tipo de segregação é insultante quando vem dos homens e não é menos ruim quando
vem das mulheres.
O que elas reivindicam em nome das prostitutas?
Dizem que prostituição é um sinal de desigualdade, é violência de
homens contra mulheres, é opressor, que não existe entrada voluntária nesse
ramo. Tipicamente, essas mulheres são brancas, universitárias e classe média ou
média alta. Ou seja, bem diferentes do perfil médio das trabalhadoras sexuais.
Não poderiam estar mais distantes da nossa realidade.
E o que reivindicam os movimentos de
prostitutas?
Que nos deem direitos trabalhistas, que tratem nossa atividade
como trabalho, ainda que você acredite que seja o pior trabalho do mundo.
Descriminalize esta atividade e use as leis que já existem para
tratar dos problemas que emanam desta indústria. As Nações Unidas compartilham
desta mesma perspectiva.
A atividade é crime em boa parte do mundo?
Sim. E em muitos países há leis sobre terceiros. Cafetões são
donos dos negócios, nossos chefes. Facilitam nosso trabalho ou provêm
oportunidades de trabalho para nós.
Mas exploram seu trabalho por meio de violência.
Se você olhar para qualquer mercado de trabalho informal, como
alguns trabalhos domésticos, vai encontrar figuras abusivas que se valem da
informalidade para isso.
Ficam com grande percentual do que vocês
recebem, não?
Como acontece com donos de bares, de lojas etc. Os trabalhadores
sexuais são capazes de fazer acordos tanto quanto qualquer outro profissional.
Só porque estamos vendendo sexo não quer dizer necessariamente que é uma
relação opressora.
A saída é legalizar ou descriminalizar esta
atividade?
Legalizar muitas vezes é só uma nova forma de controle. Criam leis
especiais para o trabalho sexual, como se ele fosse especial. É o caso da
Holanda, onde é proibido trabalhar nas ruas, o que criou trabalho sexual ilegal
mesmo num modelo legalizado.
O melhor arranjo é a descriminalização, porque usa as leis que
valem para outros trabalhadores, tratando-nos de forma igualitária.
Alguém vai dizer: "Mas e o estupro? E o sequestro? E o
trabalho escravo? E o tráfico internacional?". Isso tudo já é proibido por
outras leis.
Alguém que estupra um trabalhador sexual é um estuprador, não um cliente,
e precisa ser responsabilizado como tal. A única coisa natural no nosso ramo é
fazer sexo de maneira negociada. Violência não faz parte do pacote.
Onde esta atividade foi descriminalizada?
Nova Zelândia e New South Whales, na Austrália. O sistema ainda
não é perfeito, mas a indústria do sexo não cresceu porque deixou de ser
criminalizada.
Como funciona o modelo sueco, no qual se
inspirou um projeto de lei brasileiro?
Ele é baseado na concepção de feministas radicais de que todo
trabalho sexual é coercivo e violento contra a mulher.
Nega que uma mulher possa voluntariamente fazer sexo por dinheiro.
Não criminaliza o trabalho sexual, mas quem compra o serviço e quem o facilita.
Ou seja, inviabiliza a atividade. O objetivo é acabar com esse tipo de trabalho,
e tem se espalhado como praga: Noruega, Finlândia, Irlanda do Norte, França e
Canadá.
Ele parece inocente, mas não existe nada mais desmobilizador do
que carimbar uma categoria como vítima. Somos estereotipadas e o estigma social
nos torna menos humanas. Isso nos expõe à violência.
Quais as consequências dele?
Na Suécia, onde há pouca violência, houve vilas em que
trabalhadoras sexuais foram linchadas. E houve a primeira morte de uma
imigrante trabalhadora sexual.
Qual seria seu impacto num país violento como o
Brasil?
Aqui significaria a morte de mais trabalhadores sexuais, com
certeza. Porque, de alguma maneira, quando se quer salvar alguém de algo, ainda
que ninguém tenha pedido por isso, a pessoa que escolhe não ser salva será
culpada pelo que acontecer a ela.
Aplicativos de celular que facilitam encontros
sexuais, como Tinder, prejudicaram a indústria do sexo?
Isso varia de um lugar para outro. Não percebemos diferença na
Suécia. São coisas diferentes. Com um trabalhador sexual, você sabe o que vai
obter. Pode não ser o melhor sexo da sua vida, mas é previsível. Nesses
aplicativos, o sexo é parte de um jogo e você nunca sabe ao certo se vai
pontuar o suficiente para chegar lá.
Raio-X
Atividades
Trabalhadora sexual desde os anos 1980, militante pelos direitos de quem atua
no ramo desde 1990, fundadora da Rose Alliance, ONG sueca pelos direitos
humanos e trabalhistas de trabalhadores sexuais e eróticos
-
No Brasil, projetos tramitam com objetivos opostos
Dois projetos de lei que tramitam atualmente na Câmara dos
Deputados dispõem sobre arranjos antagônicos no que diz respeito ao trabalho
sexual no Brasil.
O mais antigo, PL 377/11, do deputado João Campos (PSDB-GO),
conhecido pelo projeto da "cura gay", propõe que passe a ser crime a
contratação de serviços sexuais, ou seja, criminaliza os clientes de
trabalhadores sexuais e é declaradamente inspirado no modelo sueco.
O segundo, criado pela Rede Brasileira de Prostitutas e
apresentado pelo deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ), propõe a descriminalização do
comércio de sexo por terceiros e das casas de prostituição.
Estabelece até mesmo um teto para o percentual do faturamento do
trabalhador sexual que poderia ser retido pelo facilitador ou dono de agência
para evitar exploração.
Atualmente, é crime facilitar ou manter estabelecimento onde este
comércio ocorra. "Na prática, a norma criminaliza a profissão
indiretamente. É um paradoxo porque as prostitutas existem e a falta de
reconhecimento desta atividade é que torna seu exercício perigoso."
Quem afirma isso é a professora de antropologia da UFF
(Universidade Federal Fluminense) Ana Paula Silva, 38, pesquisadora do
Observatório da Prostituição e presidente do coletivo Davida.
Para ela, o contexto político atual favorece a aprovação da
proposta baseada no modelo sueco. "Ao criminalizar o cliente, o projeto
pretende acabar com a prostituição. Mas ele não tira as pessoas da profissão,
apenas as torna mais marginalizadas", avalia.
Segundo ela, o tema divide as várias correntes feministas.
"Há feministas que têm um projeto conservador de controle e repressão
contra outras mulheres. Os homens que são trabalhadores sexuais nunca aparecem
nos debates. O problema parece ser o protagonismo da mulher sobre a sua sexualidade."
FONTE: Aqui
0 comentários:
Postar um comentário