sábado, 1 de outubro de 2016

José de Sousa Miguel Lopes - A cultura acústica em Moçambique ou como dar alpista ao blogue

Resultado de imagem para Língua portuguesa em Moçambique

Alertado por alguns amigos e internautas, constatei que no blog moçambicano “Diário de um sociólogo”, por razões que desconheço, não é mais possível o acesso ao meu texto de resposta às considerações que o autor do blog fez entre 27/08/2007 e 13 /09/2007, a propósito da publicação de minha tese de doutorado “Cultura acústica e letramento em Moçambique: em busca de fundamentos antropológicos para uma educação intercultural”. Com efeito, se o leitor clicar aqui terá acesso ao título da postagem “Cultura acústica dos Moçambicanos (Lopes responde)”. Mas se pretender ler a minha resposta clicando em O autor respondeu com o texto que pode importar e ler aqui constatará que não terá acesso a ela. Por desejarem conhecer o teor de minha resposta que tem o título “A cultura acústica em Moçambique ou como dar alpista ao blogueesses internautas solicitaram-me, então, que publicasse a resposta neste blog. É o que faço agora.
Sr. Serra:
Alguém me alertou que você estava “trabalhando” minha tese de doutorado no seu blog. Resolvi conferir. Constatei que no dia 17/08/2007 você fez uma breve apreciação a um extrato de um texto meu publicado no Semanário “O País” nesse mesmo dia. No dia 25/08/2007, prosseguiu suas apreciações e, no dia 28/08/2007, publicou integralmente os extratos da minha tese que saíram nos dois números consecutivos do referido Semanário. No dia 13/09/2007 publicou mais uma entrada. Após quase um mês de ausência, sua análise tem continuidade no dia 23/09/2007. Anunciou que iria prosseguir suas reflexões. Simultaneamente, passou a colocar diariamente a manchete “A cultura acústica dos moçambicanos (9)” na tarjeta rolante no topo do blog que sinaliza as “Próximas Manchetes”. No dia 21/11/2007, portanto quase dois meses depois do anúncio que ira elaborar as conclusões, a tarjeta é reformulada com novas manchetes e deixa de aparecer a manchete “A cultura acústica dos moçambicanos (9)”! Portanto, ao que tudo parece indicar, as conclusões prometidas, não se efetivaram!
É sempre prazeroso ver um trabalho meu ser dado a conhecer a um público mais amplo, que não apenas o da área de educação, por forma a suscitar debates, críticas, elogios, podendo, enfim, desencadear uma vasta gama de opiniões que, de alguma forma, contribuam para melhor iluminar os objetos de estudo e pesquisa a que me dedico.
Por isso, foi uma agradável surpresa ter constatado que no dia 17/08/2007 você fez duas entradas onde remete para o meu trabalho e anuncia que outra(s) se seguirá (ão). Mas aquilo que me parecia ser, à partida, algo estimulante (incluo aqui mesmo as críticas mais contundentes), se transformou, rapidamente, em algo preocupante, pois seu texto revela inverdades e ironias bem curiosas! E aqui, o Sr. Serra começou a entrar num terreno pantanoso, para o qual, confesso, num primeiro momento não tive vontade de gastar meu tempo.
Sr. Serra, com o passar dos anos, adquiri somente um traço da tão propalada sabedoria que vem com a idade; além do mais, um traço negativo, uma simples perda que talvez nem sequer faça de mim uma pessoa mais sábia, mas apenas menos idiota. Consiste numa drástica redução de minhas opiniões sobre tudo o que não conheço de primeiríssima mão.
Três décadas atrás, nada do que era humano era para mim já não digo estranho, mas nem ao menos um pouco obscuro. Por isso, eu ostentava ideias claras sobre o Vietname (os dois), o marxismo, Lumumba, a Albânia, os massai e a chegada do homem à Lua. Conflitos entre árabes e judeus em territórios bíblicos não encerravam para mim nenhum segredo, e eu teria dado uma conferência sobre qualquer país africano para Nelson Mandela, se esse eminente personagem caísse na tolice de me consultar a respeito. Depois, como a árvore que vai perdendo folhas com a chegada do outono, minhas certezas inabaláveis foram me abandonando até me deixar trémulo de reticências, nua e cruamente cético. Antes, tudo era claro, agora me parece claro que tudo pode ser obscuro. Não ocultarei certa nostalgia daquela época de ouro em que eu era taxativo sem escrúpulos ou competência.
Agora mal me atrevo a opinar sobre aquilo que vivo e sofro diretamente. Por isso, tenho um pouco de inveja e muita desconfiança de alguns intelectuais e suas claras certezas – sejam a favor ou contra – sobre os mais variados assuntos. Para não me atolar por completo no pântano da dúvida, construí um modo de refletir informado pela prudência.
Neste caso, e por questões éticas, vejo-me obrigado a opinar e a alongar-me mais do que desejaria, por forma a clarear alguns pontos de seus escritos. Ao contrário do que ocorreu com minha Tese [“Cultura acústica e letramento em Moçambique: em busca de fundamentos antropológicos para uma educação intercultural”. São Paulo: EDUC, 2004 • 672 páginas • 16x23 cm - ISBN 85-283-0286-5 • R$ 63,00. Quem estiver interessado em adquiri-la, pode entrar no site http://www.pucsp.br/educ/ Poderá igualmente utilizar Fone/Fax: (11) 3670-8085. E-mail: educvendas@pucsp.br], aqui, por razões óbvias, vou ter que ser o mais económico possível. Quero acreditar que sua análise se baseia no texto publicado pelo Semanário “O País” e não no livro que você possui [Você possui um exemplar, oferecido pelo nosso compatriota Manuel Mangue]. Qual a razão porque você preferiu dar mais credibilidade ao texto do Semanário e não ao meu texto original, é algo que escapa totalmente á minha compreensão. Consta que você é um escritor obstinado, porque é um leitor obstinado. Daí minha surpresa, por você preferir tomar como única fonte de referência o texto saído no jornal. Necessariamente você teria que fazer isso, se não dispusesse do original. Mas como não é o caso, minha surpresa ampliou-se. Eu sei que o meu livro é extenso, que o ritmo da vida moderna não se compadece com textos desta natureza, a produção de vários blogs e, sobretudo os insistentes pedidos aos leitores para que votem no seu blog [Fico a imaginar o que pensam os leitores sobre esses seus insistentes pedidos para que votem no seu blog...O céu é o limite!] (uma autopromoção disfarçada?) ocupa bastante tempo... enfim, por estas ou outras razões que minha limitada imaginação não pode alcançar, a análise que você realizou, longe de tornar as coisas claras para um público amplo, as obscureceu. Algumas pessoas comprazem-se em afirmar: “Não li e não gostei”. As decorrências deste tipo de posicionamento estão à vista. Como se diz em terras brasileiras, “se podemos complicar, porque facilitar?” Por um caminho que não procurei trilhar, estou acabando por “dar alpista ao seu canário”, ou melhor, “dando alpista ao seu blog”. Mas, como diz o homem do talho, vamos por partes.
A primeira inverdade, que considero de somenos importância, você a bebeu na fonte secundária. Eu não sou doutorado em “História”, mas sim em “História e Filosofia da Educação”.

Sobre o erro da adopção do português como língua oficial em Moçambique

A segunda questão diz respeito ao título bombástico do jornal “O País” segundo o qual a introdução da língua portuguesa em Moçambique teria sido um erro. Do título sensacionalista do jornal, para a incorporação desta ideia sensacionalista em seu blog, foi a distância de um palmo. Surge, assim, a segunda inverdade. Ela diz respeito à sua afirmação, segundo a qual eu sustento na minha tese que a adopção do português como língua oficial foi um erro que tem contribuído para o agravamento das taxas de analfabetismo no país”. Realmente, a frase que o jornal explora “língua portuguesa como erro” aparece no início do texto da orelha do meu livro. Ao que tudo indica, o jornalista do semanário leu o texto da orelha e...pouco mais (se calhar, apenas os extratos de meu livro que foram publicados). No corpo da notícia, o semanário “O País”, através de um autor desconhecido, faz uma breve introdução ao meu texto, utilizando essa frase. Mas quem, a seguir, ler o meu texto, constata que nada vai encontrar que dê sustentação ao que foi publicado no título do jornal e na breve introdução. Leitores devem ter procurado com afinco, que língua então eu estaria propondo em substituição do português. E nada encontraram no texto! Como é de imaginar, tais leitores devem ter-se sentido mais perdidos que “cego em tiroteio”. Daria para desconfiar que “algo está podre no reino da Dinamarca”, não é mesmo? Mas os leitores interessados não tinham como solucionar o problema, dado que não tinham acesso à fonte primária: o meu livro. É aí que você entra em cena. Sendo possuidor de um exemplar, uma leitura, mesmo que em diagonal, permitir-lhe-ia constatar a enormidade do que o jornal estava explorando. Qualquer pessoa com um mínimo de traquejo de leitura, imediatamente poderia constatar que se tratava de uma falha de revisão. Outras haverá, lamentavelmente. Contudo, bastariam mais uns segundos (repito, segundos) de leitura para, no próprio texto da orelha do livro, um pouco mais abaixo, se deparar com o que verdadeiramente proponho. Como refere o provérbio, teria sido “mais fácil do que morder água”. Se, ainda assim, lhe restassem dúvidas, você as poderia solucionar lendo o meu trabalho até ao final. Na esteira do sensacionalismo presente no jornal, você limita-se a utilizar exatamente a falha que ele explora.
A ser verdade que defendo ter sido a definição da língua portuguesa um erro, estaríamos perante uma informação, realmente, impactante e verdadeiramente original, o que, por si só, justificaria de imediato um rastreamento completo de meu trabalho em busca, então, da língua oficial que eu proponho para o país. Alguma língua moçambicana? Ou o mandarim, ou o inglês, ou o russo, ou...? E, no resumo da ópera, por mais que a procure, quer no texto da orelha, quer em toda a minha tese, não vai encontrá-la. E não vai encontrá-la, pura e simplesmente, porque este despretensioso pesquisador apenas propõe, como língua oficial, veja-se a audácia... a língua portuguesa!!! Tanto barulho, por nada. A montanha pariu um rato!
Quando se cita um texto, por forma a dar a entender que o seu autor afirma algo, quando na verdade ele pretende afirmar o oposto, ou algo muito diverso, isso é grave. Quem considera que a citação trai a mensagem do autor deveria tentar esclarecer os leitores. referindo em que medida é que o contexto desmente a ideia que se tentou passar através da citação. Mas o sensacionalismo falou mais alto!
No âmbito deste texto não dá para colocar as inúmeras passagens da minha tese em que está explícita ou implícita a minha defesa da língua portuguesa como língua oficial em Moçambique. O que afirmo logo de entrada, no texto da orelha de meu livro é que (...). Para problemas tão complexos sustentamos que se deverá implantar, em termos linguísticos, um bilinguismo que possa abrir caminho a uma revalorização da(s) cultura(s) acústica(s) e, consequentemente das línguas autóctones, sem prejuízo para o facto de que em inúmeras funções, a língua portuguesa continue desempenhando o papel de língua oficial, construindo, assim, uma cada vez mais efetiva educação intercultural (negritos meus). Na página 234, por exemplo, afirmo que “O novo poder político saído da independência, vai utilizar a língua portuguesa como língua de unidade nacional, procurando fazer dela, não um “instrumento de dominação, mas, ao contrário, um instrumento de libertação”. Se é pacífico aceitar como correta esta estratégia, dado que nenhuma das línguas autóctones tem uma cobertura territorial tão avassaladora que pudesse instituir-se como língua nacional, já nos parece contudo bastante controversa, ou no mínimo problemática, a política linguística que foi adotada face ás línguas autóctones” (negritos meus).
Se defendo um bilinguismo (língua portuguesa e língua moçambicana), como posso afirmar que a introdução da língua portuguesa foi um erro?!!
Então qual a razão que levou você a “empurrar” os leitores de seu blog para uma falsidade? Estaremos em presença de uma leitura apressada? Ou enviesada? Trata-se da busca do sensacionalismo para atrair leitores? Trata-se de valorizar mais as fontes secundárias do que as primárias? Ou, finalmente, trata-se do fenómeno do iletramento que parece estar agora, surpreendentemente, introduzindo-se também em algumas pessoas pertencentes á elite intelectual moçambicana? Deste “cardápio”, escolha o “prato” que mais lhe agradar.
A questão da introdução das línguas moçambicanas no sistema educacional, ao que tudo parece indicar, já vai tarde. Que importância atribuiu o poder político ao estudo e sistematização dessas línguas? Veja-se a designação que foi atribuída ao órgão que se dedica a esta tarefa: NELIMO (Núcleo de Estudo das Línguas Moçambicanas). Mais de duas décadas se passaram e permanece “núcleo” até hoje. Nem Instituto de Línguas Moçambicanas, nem Faculdade de Línguas Moçambicanas...! Núcleo, simplesmente. As micro experiências de bilinguismo introduzidas timidamente nos últimos anos em Moçambique, levam-nos a colocar a hipótese de que apenas servem para acalmar as “pressões” dos organismos internacionais (UNESCO, sobretudo) que prescrevem a defesa das línguas maternas em todo o mundo. Muitas das razões do fracasso foram claramente explicadas pela minha colega Fátima Ribeiro, que recentemente escreveu em seu blog um artigo da maior pertinência sobre este assunto e com o qual concordo. A professora Fátima Ribeiro afirma que “o modelo de ensino bilíngue em aplicação não é sustentável”. Ela não condena o ensino bilíngue. Condena sim, o modelo que está a ser implementado, sobretudo tendo em atenção a situação calamitosa do sistema educacional que, se já enfrentava problemas quando eu concluí meu trabalho em 1999, agora eles são bem maiores. Minha colega alerta ainda “para a necessidade urgente de uma abordagem mais global do Programa de Educação Bilíngue, uma fundamentação mais consistente do que se está a estabelecer, e uma urgente definição de responsabilidades para a prevenção do que poderá acontecer”. É difícil não concordar com ela.
Nenhum pesquisador minimamente informado do campo educacional (e não só) defende, para contextos similares ao moçambicano, o abandono das línguas maternas no ensino.
Uma questão linguística, por si só, envolve muitas outras, incluindo políticas, económicas, culturais, e mesmo psicológicas. Para uma nação, uma comunidade, um grupo, a língua é a sua forma de se representar junto ao mundo. Quando a língua é usada, ela expressa toda uma maneira de ver, de sentir, de aprender. Quando uma língua desaparece, com ela desaparece todo um universo, porque o universo é, em parte, a maneira em que ele é visto.
Os dirigentes políticos de cada país precisam conscientizar-se que falar mais que uma língua não diminui o patriotismo de ninguém, e nem diminui a sua capacidade de expressar-se na língua nacional. Pelo contrário: as pessoas que dominam bem duas ou mais línguas nas três formas (ler, falar e escrever), têm um vocabulário mais rico, e desenvolvem mais formas de expressão nas duas línguas. Naturalmente, os dirigentes de todos os países sabem muito bem disto, porque se tal não fosse o caso, as escolas de línguas seriam proibidas. Mas o problema é que as escolas de línguas são caras, e somente os filhos das classes mais ricas (ou as pessoas excepcionalmente talentosas para aprender línguas) acabarão falando fluentemente outras línguas.
O que os governos de todos os países precisam, penso eu, é de certificar-se de um excelente ensino da língua nacional ao lado de ofertas de ensino de várias outras línguas já na escola primária, para que os jovens alunos comecem, desde cedo, a aprender a falar várias línguas.
O assunto de minha tese é bastante polêmico e muitas das minhas dúvidas não foram totalmente dirimidas quando concluí meu trabalho. Algumas dúvidas permanecem, outras se instalaram. Não me julgo detentor da verdade. Pelo contrário, aceito e defendo que todo o conhecimento é provisório. Por isso estou aberto à troca de ideias, assentes em reais argumentos e não em premissas forjadas. O que não aceito é colocarem coisas que não afirmei.
Não é a primeira vez, nem será a última, que leitores apressados e desatentos, procurando as razões mais diversas, se dedicam a “minimizar” (não vou utilizar um termo mais forte) o trabalho de anos de pesquisa, realizada, muitas vezes em condições quase dramáticas, pela carência quase total de apoio de quem se aventura a fazer essa atividade na periferia do sistema. Você próprio conhece bem esta questão. Aliás, a História da Ciência está cravejada de infindáveis exemplos do que acabo de afirmar.

Sobre a expressão “cultura acústica” (sic) ou a problemática do universal e do particular

A terceira questão não remete a inverdades, mas sim á ironia e suas decorrências, entre as quais, a desqualificação. Quando você utiliza pela primeira vez a expressão “cultura acústica”, coloca logo a seguir a expressão (sic). Qual a razão porque a utilizou neste caso? O termo sic – advérbio latino que quer dizer “assim” – é usado entre parênteses depois de qualquer palavra ou frase que contenha um erro gramatical ou um dito absurdo que o redator quer deixar claro que não é dele, mas da pessoa que falou ou escreveu aquilo. Em resumo: ao colocar o (sic), você mostra ao leitor que é assim mesmo que estava no original, por mais errado ou estranho que pareça. O que há de errado com o conceito “cultura acústica”? Colocar o (sic) simplesmente sem nada mais acrescentar é, no mínimo, arrogância e/ou desonestidade intelectual. O conceito soa mal a ouvidos mais refinados? Deveria ter utilizado outros conceitos para designar o mesmo fenómeno? Variados autores utilizam, além deste mesmo conceito, alguns outros como cultura oral, cultura ágrafa, cultura sem escrita, cultura não-letrada, cultura oralista, cultura de oralidade primária, cultura de forte tradição oral, cultura verbo-motora..., com um significado equivalente ao de cultura acústica. Ou será que deveria seguir um pretenso “pensamento único” agora tão em voga? No dia 25/08/2007, volta á carga e agora procura esclarecer (?) um pouco mais o leitor. Veja-se este sugestivo naco de prosa: Esferica e acusticamente, a tese de Lopes abrange rigorosamente desde o presidente Guebuza ao modesto camponês do Zóbuè lá na minha terra, Tete. Ambos e todos são - somos - definitivamente acústicos, incluindo, claro, o Sr. Lopes. Os acústicos não têm fissuras, não são sujeitos às clivagens sociais, são iguais por inteiros, estudem numa modesta escola do Niassa ou façam um doutoramento no Brasil como fez o Sr. Lopes, sobrevivam num dumba-nengue ou tenham montes de empresas”.
Quase um mês depois (23/09/2007), dá continuidade a esta questão mas, na verdade, apenas repisa os seus argumentos em nova roupagem vocabular. A utilização de um fraseado mais elaborado, procura esconder a falta de ideias. Repare-se nesta frase: Vivem no cultural, na língua, no doce enlevo rousseauista, pela diástole expelem especificidade, pela sístole recusam o que, porque não acústico, os magoa, os desacusticiza (esta tese do magma cultural torna-se cada vez mais corrente no país, à medida que as desigualdade sociais se ampliam).
O que está em causa é a velha questão do universal e do particular. Como você sabe, o termo universal e o termo particular são polissêmicos. O uso que deles fazemos remete a diferentes tradições de pensamento. Pensadores de vários campos das ciências humanas, como Condorcet, Kant e, mais recentemente, Foucault e Habermas, entre outros, debruçaram-se sobre estas categorias.
Na tradição sociológica, a noção investe-se de outro significado. Para Durkheim não existe o homem, mas sim a sociedade. Sua compreensão contrapõe-se à perspectiva filosófica que postula a existência de uma essência a-histórica, a natureza humana. As sociedades são distintas entre si e sui generis, envolvem os indivíduos e os inserem numa rede de relações sociais. Nesse sentido, não existiria humanidade, unidade genérica na qual “todos” estariam incluídos.
Do ponto de vista sociológico, algumas dimensões da universalidade, merecem ser sublinhadas. Há, primeiro, a oposição ao particularismo, ou seja, aos costumes, valores e poderes restritos aos limites das localidades. As religiões universais, obras de intelectuais, repousam na escrita e têm uma maior capacidade de “universalização”. A escrita é fundamental nesse processo. Contrariamente à oralidade, ela é um fator tecnológico que propicia a descontextualização das normas. O texto possibilita uma liberação dos limites provinciais, abrangendo um raio de maior amplitude. Ele favorece a expansão religiosa, via conversão, dando-lhe um alcance que supera em muito o localismo das crenças particulares (o mito).
A perspectiva sociológica permite-nos afirmar: existem vários universais que se contradizem uns aos outros e competem entre si (confucionismo versus budismo, budismo versus bramanismo, cristianismo versus islamismo, etc.). Eles não existem em abstrato, devem ser situados historicamente e qualificados em suas especificidades.
A sociologia mostra-nos que as sociedades modernas são marcadas pela diferenciação. Elas se contrapõem às sociedades tradicionais, nas quais predominaria o espírito comunitário. Nelas há uma maior divisão de trabalho, uma relação mais complexa entre as diferentes instâncias que arbitram a vida social. É neste sentido que eu coloco o conceito de “cultura acústica” como um universal, como um atributo de enorme importância em Moçambique. Sem ignorar a rica diversidade cultural presente no nosso tecido social (que, aliás, perpassa toda a minha tese), eu utilizo este universal, para me referir a uma característica que é dominante numa sociedade maioritariamente camponesa. Sem ignorar a árvore, eu estou falando, fundamentalmente, da floresta.
Existe, por exemplo, uma África única? O historiador do Burkina Fasso, Joseph Ki-Zerbo afirma que “A música, a dança e as artes africanas foram reconhecidas como dignas fontes de inspiração (...) Há uma arte de viver africana, uma arte de solidariedade, uma arte da alteridade, de abertura aos outros, que os europeus não encontram nos seus países. Lamento que as bases dessa cultura africana estejam prestes a apagar-se” [KI-ZERBO, Joseph. Para quando a África? Entrevista com René Holenstein. Rio de Janeiro: Pallas, 2006 (p.137)]. Embora sejam de admitir exceções em todas estas características atribuídas ao universal África, não vejo porque alguém possa vir desqualificar a fala de Ki-Zerbo, com o fundamento de que na etnia x ou na etnia y, algumas das características que ele refere, estão ausentes.
A diferença não possui um valor “em si”, uma “estrutura” ou “essência” atemporal. A diversidade existe em situações históricas determinadas, ela deve também ser qualificada. Nesse sentido, não é tanto a oposição em relação ao universal que interessa, mas como a mudança de contextos incide sobre a nossa compreensão desses conceitos. As sociedades são relacionais, mas não relativas. Suas fronteiras entrelaçam-se e muitas vezes ameaçam o território vizinho. O debate sobre a diversidade não se restringe, pois, ao argumento lógico-filosófico; ele necessita ser contextualizado. É insatisfatória a imagem de que o mundo seria multicultural, formado por um conjunto de “vozes”. Ele dificilmente poderia ser visto como um caleidoscópio, metáfora frequentemente utilizada por vários autores, instrumento que combina os fragmentos coloridos de maneira arbitrária em função do deslocamento do olho do observador. As interações entre as diversidades não são arbitrárias. Elas se organizam de acordo com as relações de força manifestas nas situações históricas concretas (países fortes versus países fracos; transnacionais versus governos nacionais; civilização “ocidental” versus mundo islâmico; estado nacional versus grupos indígenas). Universal e particular são pares opostos. A diferença associa-se ao polo do particular, e nesse sentido seria incompatível com o movimento de universalização. Universal remete-nos à ideia de expansão, quebra de fronteiras, “todos”, humanidade; diferença associa-se a particular, contenção, limites, identidade.
Na minha tese (pág. 576) eu refiro: Grande parte do estudo acerca do contraste entre as culturas acústicas e as culturas letradas ainda está por ser feito. O que se aprendeu recentemente sobre esse contraste continua a ampliar o entendimento não apenas do passado oral, mas também do presente, libertando nossas mentes do texto e colocando sob novas perspectivas boa parte daquilo com que há muito tempo estamos familiarizados.
Abordando os traços distintivos de uma cultura acústica, como a moçambicana, suas percepções de tempo e espaço, não deixamos em nenhum momento consciente ou inconscientemente de dialogar com a cultura letrada, procurando descortinar as diferenças e semelhanças.
Tornou-se muito claro que os traços característicos da cultura acústica, encontram-se de maneira mais ou menos marcada, nas culturas letradas. Isto significa, simplesmente que: todas as culturas letradas foram, em algum momento de sua história, culturas acústicas. Os homens falavam antes de escrever (a prova mais evidente é a de que se estuda o nascimento da escrita) e organizam as sociedades em função desse fato. Mas esses “traços” testemunham também o fato que as culturas letradas conservam todas elas uma parte da oralidade, e que esta parte, não pode ser encarada como algo cristalizado. Os “slogans” brandidos por manifestantes das modernas culturas letradas apresentam qualidades formais (ritmo, rimas, aliterações) que os assemelham de maneira funcional às culturas acústicas. Este, como outros exemplos da atualidade, revelam bem que a fronteira entre a oralidade e a escrita não é impermeável.
Sendo eu, como você, escolarizado, sou possuidor de uma cultura letrada. Nem por isso, deixam de me acompanhar, e a você também, as inúmeras marcas da cultura acústica. Neste texto que lhe escrevo utilizo, por exemplo, provérbios (uma das marcas da cultura acústica), em variadas passagens. O que isso revela? Simplesmente que, em parte, incorporo, esses traços da cultura acústica. Para o seu cartesianismo (Guebuza de um lado, camponês do Zóbuè de outro, escolarizado do Niassa de um lado, doutoramento do Sr. Lopes no Brasil do outro, sobreviventes num dumba-nengue de um lado e donos de montes de empresas do outro!!!!), isto é um pouco complexo, não é mesmo?
Contudo, para melhor entender o que estou falando, leia, pelo menos, as 60 páginas do capítulo de minha tese “Fundamentos para uma antropologia dos sentidos”, (pág. 157-215) particularmente o item “Teoria do conhecimento na cultura acústica: mito ou realidade?” (pág. 206-215).

Sobre o neo-hegelianismo
Você me atribui o epíteto de neo-hegeliano. A obra hegeliana é fonte de inúmeras controvérsias. Várias tradições filosóficas reivindicam algum legado hegeliano, embora em geral não se auto-intitulem hegelianas. Como é por demais sabido, Hegel foi um filósofo que influenciou Marx, Georg Lukács, Herbert Marcuse, Theodor Adorno, Ernst Bloch, Jean Paul Sartre, Maurice Merleau-Ponty, Lacan, entre outros.
Pode-se, como é amplamente conhecido, a partir de determinadas frases, separadas de seu contexto, classificar alguém, ou suas ideias, como sendo “corretas” ou “incorretas”, “verdadeiras” ou “falsas”, “infantis” ou “maduras”, consoante o gosto do freguês, não é mesmo? Confiante no poder do espírito para conseguir modificar a realidade viva, o neo-hegeliano imagina com demasiada facilidade que a marcha vitoriosa das suas ideias pode transformar o mundo. Nada mais distante de meu pensamento do que perfilhar tal posicionamento. Embora reconheça a importância das ideias na transformação social, defendo como o “velho” Marx, que é a base material, em última instância, o fator determinante. Quem ler minha tese e inúmeros outros trabalhos que tenho publicado ao longo do tempo, pode constatar que minha perspectiva é marxista, afastada dos traços ortodoxos e/ou dogmáticos que muitos “herdeiros” de Marx perfilham. Assim, estou nos antípodas das ideias que Hegel defende no trecho tão astutamente selecionado por você. Quem conhece a minha trajetória sabe do que estou falando.
Para melhor mostrar aos seus leitores quem eu sou, o que você faz? Apresenta algumas ideias de Hegel sobre os africanos que apenas os racistas mais tenebrosos de hoje ainda sustentam. Ou seja, de forma subliminar, você induz o leitor a pensar que está diante de alguém (neste caso, eu) que perfilha ideias iguais ou muito próximas das que Hegel (no contexto do século XVIII-XIX) defende no trecho que selecionou. E o que você seleciona desse gigante do pensamento filosófico? Algo como, “africanos como infantis, antropófagos, crianças sem consciência do espírito, puras, totais, crianças vivendo no mais perfeito “estado de inocência” (sic), etc. etc. etc. Em resumo, você lança mão de um extrato de Hegel para, de forma desonesta, me colocar como alguém que não merece que os leitores me concedam um mínimo de crédito. Que dialética você usa? Marxista ou marchista? Apoia-se em marxianos ou em marcianos? Assim caminha a humanidade, não é mesmo?
Sobre a “metodologia” que seguiu para analisar esta temática ou a imitação de Samuel Becket
É realmente curioso o tempo gasto pelo Sr. Serra (mais de 3 meses!!!) para analisar um pequeno texto publicado no jornal bem como a forma como tratou o assunto (pequenas “pílulas” de análise, anunciando em cada “pílula” que outra(s) se seguiria(m). É claro que você faz isso recorrentemente com outras temáticas. Mas tenho dúvidas que algumas delas tivessem “demorado” tanto tempo para ser “analisadas”. Mas mais do que isso, o surpreendente, é que você ficou mais de dois meses para anunciar as conclusões, que nunca chegaram! Tal como os dois personagens da peça “À espera de Godot” de Samuel Beckett, que aguardam a chegada de Godot, que nunca chega, você coloca seus leitores na mesma situação. Com uma pequena diferença: Beckett trabalha brilhantemente a atmosfera de medo e futuro incerto, após as trágicas consequências de duas guerras mundiais, numa alegoria desse tempo obscuro em que o ser humano é colocado numa eterna expectativa. Quanto a você...Outra hipótese é a de que você entrou de cabeça num assunto e, constata depois, que já não sabe mais como sair dele?
A quem interessa este tipo procedimento? Ao leitor? A alguns deles, talvez. Mas tenho fortes dúvidas que isso interesse á maioria. Partindo do pressuposto que você tivesse concluído sua análise, como esse leitor se vai recordar do tema, quando se passaram mais de 3 meses desde que ele começou a ser colocado em seu blog? “Calma, dirá prontamente o Sr. Serra, “no corpo do texto, eu remeto o leitor para que ele volte a debruçar-se sobre o que já publiquei sobre o tema”. Em suma, o leitor é colocado face ao “mito do eterno retorno”, não é mesmo? “É verdade”, continuará nos dizendo o Sr. Serra, “que o leitor tem todo o tempo do mundo para esses mecanismos de vaivém”! Mas me parece que esta “metodologia” serve bem mais ao autor do blog, que vai preenchendo o espaço de seu portal, sem respeitar o leitor.
Numa entrevista que concedeu a AGRY,[http://agrywhite.blogspot.com/2007/11/com-base-numa-iniciativa-de-kontrastes_19.html (22/11/2007) ] você diz que no seu blog pratica “uma espécie de sociologia de intervenção rápida, em algo que poderia tentar partilhar com muitas pessoas de forma imediata, quase táctil”. Enfim, haja criatividade. O que me parece é que estamos perante a hiper-realidade do instantâneo, dos textos que precisam ser lidos na diagonal em cada semana. Esta velocidade de informação e a comunicação fácil que propicia levaram Zygmunt Bauman [COSTA, Flávia, entrevista com Zygmunt Bauman: “Lo que queda de la belleza”, Clarin, Suplemento Cultura y Nación, Buenos Aires, 7/12/02]. a afirmar que hoje “a beleza é uma qualidade do acontecimento, não do objeto (...) a cultura é a habilidade para mudar de tema e posição muito rapidamente”. Na mesma direção se posiciona George Steiner quando sustenta que “a nossa, é uma cultura de casino e de azar, onde tudo se aposta e corre perigo; na qual tudo está calculado para gerar um máximo de impacto e uma obsolescência instantânea” (Idem, grifos meus). Então, Sr. Serra, continuemos cultivando o jardim da obsolescência instantânea, não é mesmo?
E agora vou finalizar, reiterando o que publicamente afirmei num debate recente com um historiador brasileiro que resolveu escrever sobre Moçambique no prestigioso jornal A Folha de S. Paulo, sem um mínimo de conhecimento sobre o que estava tratando. Em meu texto de resposta publicado no Observatório da Imprensa (dado que a Folha se recusou a publicá-lo) afirmei: O mestre Sherlock Holmes dizia que certos problemas exigem fumar três cachimbos para serem resolvidos. No que toca a determinados problemas, receio que você ainda esteja tentando acender o primeiro.
Minha prosa foi demasiado longa, e é pouco provável que volte a este espaço. Não é nenhuma desconsideração por você e muito menos por seus leitores. Aliado á manifesta falta de tempo, não é uma tarefa agradável fornecer alpista a seu blog.

Cumprimentos pouco “acústicos”,

José de Sousa Miguel Lopes

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