'Neurociência confirmou muitas teses da psicanálise', diz psiquiatra
JULIANA CUNHA
DE SÃO PAULO
09/07/2016
Para Ivan Izquierdo, 78,
neurocientista mais citado da América Latina, a psicanálise foi superada pelos
estudos de neurociência. "É coisa de quando não tínhamos condições de
fazer testes, ver o que acontecia no cérebro. Hoje a pessoa vai me falar em
inconsciente? Onde fica?", disse à Folha em entrevista.
A fala foi rebatida por dezenas de
psicanalistas e também é contestada por Vera Fonseca, presidente da Sociedade
Brasileira de Psicanálise, regional São Paulo.
Em entrevista, ela afirma que
Izquierdo parece ter um conceito da psicanálise de 60 anos atrás e que
neurocientistas "interessados em abrir janelas" têm criado um diálogo
criativo com a psicanálise, o que fez com que várias teses da última fossem
confirmadas.
Leia abaixo.
Folha - O professor Ivan Izquierdo
disse que a neurociência havia superado a prática psicanalítica e que hoje
técnicas como a terapia cognitiva seriam mais interessantes. O que a senhora
pensa disso?
Vera Fonseca - Ivan Izquierdo parece ter o conceito da
psicanálise prevalente há uns 60 anos. O que se observa é que vários
neurocientistas, aqueles interessados em "abrir janelas", têm se empenhado
em criar um diálogo criativo com a psicanálise. O que saiu disso foi um
panorama muito interessante, no qual várias teses da psicanálise foram
confirmadas.
Os avanços da neurociência podem
superar os dados científicos com os quais Freud trabalhava à sua época, mas não
superar a psicanálise como um todo por uma razão simples: a psicanálise
trabalha só em parte com o auxílio das neurociências. Se as duas práticas
fossem coextensivas, trabalharíamos com a hipótese de que, se chegássemos à
resposta máxima da ciência biológica, teríamos a resposta final sobre o
indivíduo e seu sofrimento. Essa é uma hipótese redutora.
A senhora poderia dar algum exemplo
dessa convergência entre psicanálise e neurociência?
Claro, posso citar vários. Primeiro,
os neurocientistas têm enfatizado a função dos sonhos na transformação das
memórias de curto prazo para as de longo prazo, o que converge com o que tem
sido discutido nos últimos tempos pela psicanálise, ou seja, a função dos
sonhos na simbolização e assimilação das novas experiências vividas pelo
indivíduo. Há ainda a questão das disposições inatas do recém-nascido para a
relação com o cuidador, já consideradas por Melanie Klein [psicanalista
austríaca] e amplamente comprovadas pelas pesquisas em desenvolvimento humano.
Vários pesquisadores enfatizam a
importância de se combinar as abordagens da psicanálise e da neurociência para
alargar o horizonte da compreensão da natureza humana, uma observando os
fenômenos mentais da perspectiva subjetiva, de dentro para fora; a outra no
sentido contrário, através de uma objetivação dos fenômenos observados. As duas
disciplinas se enriquecem com essa relação, quando se respeita a metodologia e
a epistemologia próprias de cada uma.
Isso fica mais claro ainda no
domínio da noção de inconsciente, para tocar no ponto levantado por Izquierdo.
O trabalho de Heather Berlin, que é neurocientista cognitivista, por exemplo,
diz que é inevitável que as duas áreas compartilhem de estudos uma da outra.
Não vou dizer que Izquierdo seja o
único a pensar desse modo, mas a opinião dele não é nenhum consenso entre
pesquisadores da área.
Mas ele não disse que os estudos de
psicanálise não tinham colaborado com a neurociência. O comentário dele foi
mais no sentido de que a prática psicanalítica, a clínica, estaria datado,
teria sido superado por práticas e estudos mais modernos.
Não tem como separar a clínica da
psicanálise. A psicanálise é a clínica. Você não pode dizer que respeita um sem
respeitar o outro. É no consultório que o psicanalista colhe informações sobre
como as pessoas funcionam. Dessas informações, tentamos extrair uma teoria
geral da mente, que depois retorna ao consultório.
Não funciona como um cientista que
pode estudar determinada doença do corpo sem ter contato algum com pacientes,
com o dia a dia de um hospital. A psicanálise derruba esse muro entre pesquisa
e prática, uma não se sustenta sem a outra.
Se estivesse vivo, a senhora não
acha que o próprio Freud trabalharia com neurociência?
É provável que sim, ele estava
sempre avançando na prática dele, assim como os psicanalistas de hoje não usam
as mesmas práticas que Freud, ou mesmo que psicanalistas de cinquenta anos
atrás. Quem vê de fora pode achar que a coisa é estática porque continua sendo
um consultório, uma poltrona, um divã, mas a técnica está em constante
evolução.
E o que ele disse sobre o
inconsciente, que não podia acreditar em algo que não pudesse ver e verificar?
Ah, isso foi completamente ciência
do fim do século 19, não foi? Hoje em dia não se trabalha apenas com evidência.
Um conceito não é invalidado apenas porque não posso abrir um crânio e apontar
onde fica o inconsciente, isso é muito redutor.
O próprio Lacan disse que
psicanálise não era ciência, era uma prática. Já Georges Canguilhem disse que a
medicina não era ciência, e sim uma arte ou uma técnica, e Carlo Ginzburg tem
um texto que usa Freud e mostra que na história, a medicina e os detetives
partilham um método pouco ou nada científico, o método indiciário. A senhora
defende que psicanálise seja ciência? Precisa ser ciência para ter validade?
Nem todo psicanalista segue o
pensamento de Lacan, e mesmo entre lacanianos não há um consenso sobre o que
significa essa postulação dele de que psicanálise não seria ciência. Para mim é
ciência, sim. É uma ciência com seus próprios meios de validação.
-
RAIO-X VERA FONSECA
IDADE
64 anos
FORMAÇÃO
É médica psiquiatra e fez pós-doutorado em psicologia experimental na USP
ATUAÇÃO
Diretora-científica da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
FONTE: Aqui
Breve comentário
José de Sousa Miguel Lopes
A entrevista acima coloca em discussão algumas fricções entre a a neurociência e a psicanálise, mas a defesa que a entrevistada faz da psicanálise é pouco convincente. Não entrarei em muitos detalhes, mas veja-se a forma como Vera
Fonseca termina a sua entrevista: “Nem todo psicanalista segue o
pensamento de Lacan, e mesmo entre lacanianos não há um consenso sobre o que
significa essa postulação dele de que psicanálise não seria ciência. Para mim é
ciência, sim. É uma ciência com seus próprios meios de validação”. Quais,
ela não diz! Afirma também que “Hoje em dia não se trabalha apenas
com evidência”. Ora sem evidências minimamente sustentáveis, entra-se
numa terra de ninguém onde tudo pode ser aceite!!! Se até entre correntes
de lacanianos se considera que a psicanálise não é uma ciência, imagine-se o
contorcionismo que permanentemente seus defensores tem de fazer para nos
convencer que é uma ciência!!! É difícil para defensores que se encastelaram ao
longo de décadas na crença psicanalítica, mesmo após os promissores resultados
da neurociência que cada vez mais a contesta. Não digo que não deva haver algum
diálogo entre os dois campos do saber. Embora
Vera Fonseca diga o contrário, não vejo abertura por parte dos psicanalistas em
aceitarem que seu campo cada vez tem mais dificuldade em se manter. Entre
dezenas de estudiosos que contestam a psicanálise citarei abaixo apenas quatro:
um neurocientista, dois filósofos e um antropólogo.
Ivan Izquierdo diz “(...) Mas
a psicanálise foi superada pelos estudos em neurociência, é coisa de quando não
tínhamos condições de fazer testes, ver o que acontecia no cérebro. Hoje a
pessoa vai me falar em inconsciente? Onde fica? Sou cientista, não posso
acreditar em algo só porque é interessante. Para mim, a psicanálise hoje é um exercício estético, não um tratamento
de saúde. Se a pessoa gosta, tudo bem, não faz mal, mas é uma pena quando
alguém que tem um problema real que poderia ser tratado deixa de buscar um
tratamento médico achando que psicanálise seria uma alternativa”.
Michel Onfray diz “(...) Fiquei atônito, após o lançamento do meu
livro, ao constatar como o conhecimento real e verdadeiro sobre Freud é nulo, e
quanto frequentemente as pessoas que se dizem freudianas jamais leram a obra
completa do seu guru. E se satisfazem por uma vulgata com impreciso
conhecimento de alguns textos, um gênero de assimilação que ainda prospera após
um século”. E mais adiante ao responder á pergunta A Psicanálise ainda terá lugar ao curso
deste século? Onfray responde: “Não, pelo contrário,
terá cada vez mais, longe de toda aparência de doutrina e de teoria digna desse
nome, uma imagem de disciplina esotérica. Passando-se por útil, se legitimará
com um discurso falso sábio, mas na verdade religioso, a ladainha habitual dos
curandeiros”.
George Steiner diz “A psicanálise é um luxo da burguesia. Para mim, a dignidade
humana consiste em ter segredos, e a ideia de pagar alguém para ouvir seus
segredos e intimidades me enoja. É como a confissão, mas com um cheque. É o
segredo que nos torna fortes, por isso todos meus trabalhos sobre Antígona, que
diz: “Posso estar errada, mas continuo sendo eu”. De qualquer forma, a
psicanálise está em plena crise. Lembre-se das palavras magníficas de Karl
Kraus, o satirista vienense: “A psicanálise é a única cura que inventou sua
doença”. (...) . Freud é um dos maiores
mitólogos da história. Mas se trata de ficção. Era um romancista excepcional”.
Carlos Steil pesquisador da área de
antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) diz que despertar o interesse da neurociência pelas considerações
da dimensão espiritual na saúde, deu legitimidade à discussão, uma vez que as
metodologias de pesquisa deixaram de ser altamente dependentes do paciente. “O
uso de instrumentos e tecnologias para analisar a espiritualidade, tais como o
exame de ressonância e o mapeamento, promove a desassociação dos relatos do
paciente produzindo uma quebra de paradigmas” enfatiza Carlos Steil.
Como se sabe, a
psicanálise baseia-se numa forma muito particular do método
hipotético-dedutivo “anti-popperiano”, sem intervenção experimental, sem
controle, sem falseabilidade. Basicamente, funciona da seguinte forma: 1 –
tem-se um “problema”; 2- pensa-se a respeito dele e cria-se sua hipótese,
baseada vagamente em sua observação e não se furtando de inferir constructos e
dinâmicas internas, mentais, psíquicas; 3- verifica-se se há coerência interna,
ou seja, se é coerente consigo mesma e com o resto da literatura psicanalítica
(especialmente Freud e Lacan); 4- com base em 3, modifica, se necessário, ou
propõe nova abordagem. O problema é que com este “método” você consegue
justificar virtualmente qualquer coisa. Como o psicanalista não se furta de
especulações sobre dinâmicas internas e longas cadeias de acontecimentos psíquicos
e como, principalmente, os conceitos psicanalíticos são bem “maleáveis”, você
pode delirar livremente sobre alguma coisa e acreditar estar compreendendo -
relativismos à parte – algo. Além disso, o passo 3 faz com que a Psicanálise
seja quase toda construída em cima de uma falácia: o argumento da autoridade. Isto posto, não é
difícil imaginar que surgirão dias cada vez mais difíceis para a psicanálise.
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