José de Sousa Miguel Lopes - Navegando na seara da neutralidade e da religião
Esclarecimento
inicial: Ultimamente
(meses de maio e junho de 2016) tem circulado nas páginas dos jornais
portugueses uma polêmica desencadeada a partir de um artigo que José Rodrigues
dos Santos publicou no jornal Público dia 29/05/2016 com o título “O fascismo tem origem no marxismo”. Não me vou ater a
essa polêmica, pois tudo já foi dito sobre o assunto. Mas vou resgatar um texto
que publiquei no jornal moçambicano “O País”, em finais de 2011 no qual procuro
responder a uma entrevista de José Rodrigues dos Santos na qual ele manifesta
posições bastante curiosas sobre religião e outros assuntos. Já nessa época e
mais uma vez, este jornalista ao adentrar em diversos assuntos tem a
capacidade de nos surpreender com seu aventureirismo, revelando pouca ou
nenhuma familiaridade com a temática. O que agora ocorreu na recente polêmica
não passa de uma repetição de concepções equivocadas sobre os temas em que se
debruça. Disponibilizo abaixo este breve texto aos leitores, sobretudo fora de
Moçambique, que na época não acompanharam esta questão que não perdeu atualidade.
Navegando
na seara da neutralidade e da religião
José de
Sousa Miguel Lopes
A
entrevista que José Rodrigues dos Santos, a “estrela“ do jornalismo português,
deu ao jornal moçambicano “O País” na sua edição de 15/10/2011, revela alguns
aspectos curiosos. Depois da notável vendagem de alguns de seus livros mais
recentes, como “O Codex 632” e afins, este “Paulo Coelho português” está
à beira de se autoproclamar um inovador de 1ª linha, alguém que consegue sair
de seu contexto cultural para, de forma “neutral”, trazer algo radicalmente
novo no campo da literatura e do jornalismo. Mas sua coragem o leva ainda mais
longe, adentrando, com autoridade inquestionável, na seara religiosa,
considerando violenta a religião muçulmana e considerando também que uma
parcela de crentes muçulmanos são desconhecedores de sua própria religião!
Que
o ser humano é um ser contraditório há muito que isso é sabido e o próprio José
Rodrigues dos Santos nos dá amplas provas nesta entrevista. Que as sociedades
humanas estão perpassadas permanentemente por contradições, o velho barbudo há
muito nos explicou como essas contradições operam, a sua natureza e a forma de
serem enfrentadas. O que faz crescer os seres humanos (em termos políticos,
sociais, educacionais e psicológicos) bem como as sociedades onde eles operam,
são as contradições. Até aqui nada de novo, mas José Rodrigues dos Santos
parecer navegar em um mar muito próprio, com ondas feitas à sua medida (ou ao
seu marketing?) e tendo como guia o farol da neutralidade!
Há
muito que não lia uma entrevista com tanta “pérola”. Aliás, quase toda a
entrevista é uma “pérola”. Não resisto a me debruçar sobre algumas delas.
1.
Diz
José Rodrigues dos Santos que Quando fiz “O Anjo Branco”, o que eu achava é
que a literatura sobre aquele período era, ideologicamente, envolvida. Havia
autores que demonizavam uma parte do conflito e os outros eram santinhos.
Estava para fazer um romance que fosse neutral, que colocasse as personagens a
exporem as suas opiniões e, através do que elas iam dizendo, saberíamos o que
pensavam; perceberíamos o ponto de vista de qualquer uma, independentemente de
concordarmos ou não com elas. De certo modo, é o primeiro romance imparcial
sobre a guerra colonial.
Só
ele acredita (?!) que é possível ser-se neutral! Quanto a ser o primeiro
romance imparcial sobre a guerra colonial é preciso estar impregnado de uma
enorme ingenuidade para fazer uma afirmação deste tipo. Quem quiser
compreender, o que foi a guerra colonial terá, segundo José Rodrigues dos
Santos, que eliminar toda a literatura produzida até agora pois ela é,
ideologicamente, engajada. Então, se alguém quiser chegar à verdade, pois bem,
recorra ao nosso literato neutral!
2. A seguir brinda-nos com este pedaço
de prosa: Absolutamente, todos os romances publicados, seja em Portugal,
assim como em África sobre a guerra colonial, são engajados. São romances
ideológicos, em que o autor está a expor a sua visão. O que ele pensa, muita
das vezes, é a visão que ele sente ser dominante, é o que é o politicamente
correto. Eu saí desse caminho, fui falar com muitas pessoas; fui falar com o
comandante que fez o massacre de Uiriamo e perguntei-lhe por que ele fez
aquilo, como é que se explica que tenha morto crianças e apanhei coisas que
eram contraditórias. A presença portuguesa em África estava cheia de
contradições.
Este
senhor, ao mesmo tempo que afirma que O que ele pensa, muita das vezes, é a
visão que ele sente ser dominante, é o que é o politicamente correto, ou
seja, que a ideologia predominante numa sociedade é a ideologia da classe
dominante, por outro lado, afirma que fui falar com muitas pessoas... E
daí? Essas pessoas com quem falou não tinham ideologia? Como fazer a filtragem
do que elas dizem, se não for através da própria ideologia do entrevistador?
Onde está aqui a neutralidade? E aqui vemos sua incoerência, pois mais adiante
ele afirma que O que pretendia explicar nesse livro é que, primeiro ponto,
não há objetividade. Nós nunca conseguimos objetividade e isso é valido em
qualquer ato de comunicação humana. Vimos as coisas segundo determinado prisma,
não conseguimos escapar disso. Então, em que ficamos? Primeiro nos diz que
é possível ser objetivo, e depois já diz que não é possível essa objetividade!
Não é estranho este raciocínio? É claro que o entrevistador, vai ter que
atribuir um estatuto à fala de seu entrevistado. E que estatuto é esse? Qual o
mecanismo de veracidade ele vai atribuir a esse discurso? No frigir dos ovos, é
claro que, inevitavelmente, o nosso “herói neutral” vai ter que interpretar e
vai fazê-lo de acordo com sua ideologia! E aí, acabou a pretensa neutralidade!
As contradições em que José Rodrigues dos Santos se envolveu são de tal monta
que logo a seguir se contradiz ao afirmar Que há combates ... bom, muita das
vezes há combates. Mas como é que nós construímos as coisas, a forma como as
câmaras filmam de uma maneira e não da outra, tudo isso condiciona nossa
percepção e adultera [sic]. Mas isto é valido para jornalismo de guerra como para
outro tipo de jornalismo. E, mais adiante, ele reforça o que pretende negar
ao dizer que Devemos sempre tentar dizer a verdade, mas, muitas vezes, não
temos acesso à verdade, porque quando chegamos a um sítio pode a coisa estar
manipulada [sic].
3. Interessante também é que ao falar da
pesquisa que deu suporte ao seu livro e que, na verdade, não passa de marketing
disfarçado, ele se serve do argumento de autoridade. Que autoridade? A
Al-Qaeda. Com efeito, ele diz-nos que Curiosamente, é um romance que foi revisto
por um dos fundadores da Al-Qaeda, um homem que trabalhou com Bin Laden e fez
os primeiros atentados da Al-Qaeda na Europa. Fez uma revisão do romance para
certificar que aquilo que foi escrito era verdadeiro. Muito bem, não
interessa saber quem foi esse personagem, um dos fundadores da Al-Qaeda, um
homem que trabalhou com Bin Laden. Bom saber que o autor tem fácil acesso a
esse tipo de fonte. Então, ficamos, a saber, também que, agora, é a Al-Qaeda
que tem autoridade para interpretar a religião muçulmana! Mas de onde vem a
autoridade desse pequeno grupo de facínoras? Como levar a sério este tipo de
afirmação, quando se sabe que a esmagadora maioria dos muçulmanos se distancia
completamente das teses da Al-Qaeda?
4.
Por
último, vem a parte mais patética da entrevista, aquela onde José Rodrigues dos
Santos entra mais abertamente na seara religiosa. É um festival de enormidades,
procurando demonizar de forma gritante o islamismo e o judaísmo, para atenuar a
violência ligada ao catolicismo e à cristandade. Ele passa tranquilamente uma
esponja sobre a História, procurando mostrar a religião cristã como pacifista e
afirmando que a religião islâmica é violenta! Ele afirma que E Jesus diz:
“atira a primeira pedra para quem nunca pecou”. Quer dizer, a religião cristã é
muito pacifista. O que ele precisava dizer é que todas estas religiões e as
Igrejas que lhe dão suporte, são violentas mas, é claro, que ele está a “puxar
a brasa para sua sardinha”. Aqui mandou a neutralidade “às favas”. As Cruzadas
foram relegadas para o esquecimento? E a Santa Inquisição? E a violência que há
décadas se instalou na Irlanda do Norte entre seguidores do mesmo deus:
católicos e protestantes? Se hoje o catolicismo se apresenta menos violento, se
deve à laicidade dos Estados no Ocidente, com as transformações decorrentes da
Revolução Francesa. A
Bíblia e o Corão, por exemplo, aceitam a escravidão. Qualquer um
que os considere guias morais deve ser a favor da escravidão. Não há uma única
linha no Novo Testamento que denuncie a iniquidade da escravidão. São Paulo até
aconselha aos escravos que sirvam bem aos seus senhores e sirvam especialmente
bem aos seus senhores cristãos. É desnecessário dizer que a Bíblia e o Corão,
além de não servirem como guias, em termos de moralidade, também não são
autoridade em física, astronomia ou economia. A Igreja Católica,
só para ficarmos em alguns poucos exemplos, revela sua violência, sempre que
faz suas indignações seletivas. Durante e após a II Guerra Mundial, ela
excomungou todos os comunistas e nunca excomungou um único nazista. Hitler
nunca foi excomungado assim como os ideólogos do nazismo e os membros do
partido. A Igreja Católica somente demonstra o que ela foi e é, colocando-se
sempre ao lado dos fortes, dos poderosos, da colaboração. Ela não resiste. Ela
não se preocupa com os pobres.
Mais
um exemplo de violência? Há um ano o bispo de Recife, afirmou que o estrupo é
menos grave que o aborto. Quando alguém lhe perguntou por que o padastro que
estuprou a menina não foi excomungado, ele respondeu que "dar a morte é
mais grave". Dar a morte a um feto é mais grave que o estupro e a
pedofilia? O feto é um ser potencialmente vivo que está programado para se
tornar uma pessoa, mas não é uma pessoa. Antes que se torne um ser humano,
pode-se praticar o aborto e, sobretudo, nestas condições, parece-me um ato
evidente.
No
"Catecismo da Igreja Católica" está escrito, explicitamente, que, em
alguns casos extremos, pode-se aplicar a pena de morte. É uma questão de
princípio: não se defende a pena de morte quando se é cristão. E ainda querem
que acreditemos que defendem a vida quando se defende, ao mesmo tempo, a pena
de morte? A Igreja Católica defendeu a vida ao dar a bênção às bombas atômicas
que explodiram em Hiroshima e Nagasaki? Ela defendeu a vida ao dar a bênção às
armas que serviram para assassinar os republicanos espanhóis durante a Guerra
da Espanha? A Igreja pretende defender a vida, mas o que ela defende é o poder
em vigor. Na verdade, o que fascina a Igreja é a morte. É a morte que lhe
interessa.
Para
terminar, uma observação quanto ao fato de José Rodrigues dos Santos, ter ignorado
a pacífica comunidade muçulmana que vive em Moçambique ao passar
(inadvertidamente?) o recado de que a religião muçulmana é violenta: O convívio intenso de crenças
inconciliáveis deve levar as pessoas a compreender que tais crenças são
produtos de acidentes históricos, são contingenciais, são criadas pelo homem e,
portanto, não são o que pregam ser. Judeus e cristãos, por exemplo, não podem
estar ambos certos porque o núcleo de suas crenças é contraditório. Na verdade,
eles estão equivocados sobre muitas coisas, exatamente como estavam antes os
adoradores dos deuses egípcios ou gregos. Ou os adoradores de milhares de
deuses que morreram durante a longa e escura noite da superstição e da
ignorância humana. Em qualquer lugar que os seres humanos façam um esforço
honesto para chegar à verdade, nosso discurso transcende o sectarismo
religioso. Não há física cristã, álgebra muçulmana. No futuro, não haverá nada
como espiritualidade muçulmana ou ética cristã. Se há verdades espirituais ou
éticas a serem descobertas, e tenho certeza de que há, elas vão transcender os
acidentes culturais e as localizações geográficas. Falando honestamente, esse é
o único fundamento sobre o qual podemos erguer uma civilização verdadeiramente
global.
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