quarta-feira, 27 de julho de 2016

José de Sousa Miguel Lopes - Navegando na seara da neutralidade e da religião


Esclarecimento inicial: Ultimamente (meses de maio e junho de 2016) tem circulado nas páginas dos jornais portugueses uma polêmica desencadeada a partir de um artigo que José Rodrigues dos Santos publicou no jornal Público dia 29/05/2016 com o título “O fascismo tem origem no marxismo”. Não me vou ater a essa polêmica, pois tudo já foi dito sobre o assunto. Mas vou resgatar um texto que publiquei no jornal moçambicano “O País”, em finais de 2011 no qual procuro responder a uma entrevista de José Rodrigues dos Santos na qual ele manifesta posições bastante curiosas sobre religião e outros assuntos. Já nessa época e mais uma vez, este jornalista ao adentrar em diversos assuntos tem a capacidade de nos surpreender com seu aventureirismo, revelando pouca ou nenhuma familiaridade com a temática. O que agora ocorreu na recente polêmica não passa de uma repetição de concepções equivocadas sobre os temas em que se debruça. Disponibilizo abaixo este breve texto aos leitores, sobretudo fora de Moçambique, que na época não acompanharam esta questão que não perdeu atualidade.  


Navegando na seara da neutralidade e da religião

José de Sousa Miguel Lopes

A entrevista que José Rodrigues dos Santos, a “estrela“ do jornalismo português, deu ao jornal moçambicano “O País” na sua edição de 15/10/2011, revela alguns aspectos curiosos. Depois da notável vendagem de alguns de seus livros mais recentes, como “O Codex 632” e afins, este “Paulo Coelho português” está à beira de se autoproclamar um inovador de 1ª linha, alguém que consegue sair de seu contexto cultural para, de forma “neutral”, trazer algo radicalmente novo no campo da literatura e do jornalismo. Mas sua coragem o leva ainda mais longe, adentrando, com autoridade inquestionável, na seara religiosa, considerando violenta a religião muçulmana e considerando também que uma parcela de crentes muçulmanos são desconhecedores de sua própria religião!
Que o ser humano é um ser contraditório há muito que isso é sabido e o próprio José Rodrigues dos Santos nos dá amplas provas nesta entrevista. Que as sociedades humanas estão perpassadas permanentemente por contradições, o velho barbudo há muito nos explicou como essas contradições operam, a sua natureza e a forma de serem enfrentadas. O que faz crescer os seres humanos (em termos políticos, sociais, educacionais e psicológicos) bem como as sociedades onde eles operam, são as contradições. Até aqui nada de novo, mas José Rodrigues dos Santos parecer navegar em um mar muito próprio, com ondas feitas à sua medida (ou ao seu marketing?) e tendo como guia o farol da neutralidade!
Há muito que não lia uma entrevista com tanta “pérola”. Aliás, quase toda a entrevista é uma “pérola”. Não resisto a me debruçar sobre algumas delas.
1.    Diz José Rodrigues dos Santos que Quando fiz “O Anjo Branco”, o que eu achava é que a literatura sobre aquele período era, ideologicamente, envolvida. Havia autores que demonizavam uma parte do conflito e os outros eram santinhos. Estava para fazer um romance que fosse neutral, que colocasse as personagens a exporem as suas opiniões e, através do que elas iam dizendo, saberíamos o que pensavam; perceberíamos o ponto de vista de qualquer uma, independentemente de concordarmos ou não com elas. De certo modo, é o primeiro romance imparcial sobre a guerra colonial.
Só ele acredita (?!) que é possível ser-se neutral! Quanto a ser o primeiro romance imparcial sobre a guerra colonial é preciso estar impregnado de uma enorme ingenuidade para fazer uma afirmação deste tipo. Quem quiser compreender, o que foi a guerra colonial terá, segundo José Rodrigues dos Santos, que eliminar toda a literatura produzida até agora pois ela é, ideologicamente, engajada. Então, se alguém quiser chegar à verdade, pois bem, recorra ao nosso literato neutral!
2.     A seguir brinda-nos com este pedaço de prosa: Absolutamente, todos os romances publicados, seja em Portugal, assim como em África sobre a guerra colonial, são engajados. São romances ideológicos, em que o autor está a expor a sua visão. O que ele pensa, muita das vezes, é a visão que ele sente ser dominante, é o que é o politicamente correto. Eu saí desse caminho, fui falar com muitas pessoas; fui falar com o comandante que fez o massacre de Uiriamo e perguntei-lhe por que ele fez aquilo, como é que se explica que tenha morto crianças e apanhei coisas que eram contraditórias. A presença portuguesa em África estava cheia de contradições.
Este senhor, ao mesmo tempo que afirma que O que ele pensa, muita das vezes, é a visão que ele sente ser dominante, é o que é o politicamente correto, ou seja, que a ideologia predominante numa sociedade é a ideologia da classe dominante, por outro lado, afirma que fui falar com muitas pessoas... E daí? Essas pessoas com quem falou não tinham ideologia? Como fazer a filtragem do que elas dizem, se não for através da própria ideologia do entrevistador? Onde está aqui a neutralidade? E aqui vemos sua incoerência, pois mais adiante ele afirma que O que pretendia explicar nesse livro é que, primeiro ponto, não há objetividade. Nós nunca conseguimos objetividade e isso é valido em qualquer ato de comunicação humana. Vimos as coisas segundo determinado prisma, não conseguimos escapar disso. Então, em que ficamos? Primeiro nos diz que é possível ser objetivo, e depois já diz que não é possível essa objetividade! Não é estranho este raciocínio? É claro que o entrevistador, vai ter que atribuir um estatuto à fala de seu entrevistado. E que estatuto é esse? Qual o mecanismo de veracidade ele vai atribuir a esse discurso? No frigir dos ovos, é claro que, inevitavelmente, o nosso “herói neutral” vai ter que interpretar e vai fazê-lo de acordo com sua ideologia! E aí, acabou a pretensa neutralidade! As contradições em que José Rodrigues dos Santos se envolveu são de tal monta que logo a seguir se contradiz ao afirmar Que há combates ... bom, muita das vezes há combates. Mas como é que nós construímos as coisas, a forma como as câmaras filmam de uma maneira e não da outra, tudo isso condiciona nossa percepção e adultera [sic]. Mas isto é valido para jornalismo de guerra como para outro tipo de jornalismo. E, mais adiante, ele reforça o que pretende negar ao dizer que Devemos sempre tentar dizer a verdade, mas, muitas vezes, não temos acesso à verdade, porque quando chegamos a um sítio pode a coisa estar manipulada [sic].
3.     Interessante também é que ao falar da pesquisa que deu suporte ao seu livro e que, na verdade, não passa de marketing disfarçado, ele se serve do argumento de autoridade. Que autoridade? A Al-Qaeda. Com efeito, ele diz-nos que Curiosamente, é um romance que foi revisto por um dos fundadores da Al-Qaeda, um homem que trabalhou com Bin Laden e fez os primeiros atentados da Al-Qaeda na Europa. Fez uma revisão do romance para certificar que aquilo que foi escrito era verdadeiro. Muito bem, não interessa saber quem foi esse personagem, um dos fundadores da Al-Qaeda, um homem que trabalhou com Bin Laden. Bom saber que o autor tem fácil acesso a esse tipo de fonte. Então, ficamos, a saber, também que, agora, é a Al-Qaeda que tem autoridade para interpretar a religião muçulmana! Mas de onde vem a autoridade desse pequeno grupo de facínoras? Como levar a sério este tipo de afirmação, quando se sabe que a esmagadora maioria dos muçulmanos se distancia completamente das teses da Al-Qaeda?
4.    Por último, vem a parte mais patética da entrevista, aquela onde José Rodrigues dos Santos entra mais abertamente na seara religiosa. É um festival de enormidades, procurando demonizar de forma gritante o islamismo e o judaísmo, para atenuar a violência ligada ao catolicismo e à cristandade. Ele passa tranquilamente uma esponja sobre a História, procurando mostrar a religião cristã como pacifista e afirmando que a religião islâmica é violenta! Ele afirma que E Jesus diz: “atira a primeira pedra para quem nunca pecou”. Quer dizer, a religião cristã é muito pacifista. O que ele precisava dizer é que todas estas religiões e as Igrejas que lhe dão suporte, são violentas mas, é claro, que ele está a “puxar a brasa para sua sardinha”. Aqui mandou a neutralidade “às favas”. As Cruzadas foram relegadas para o esquecimento? E a Santa Inquisição? E a violência que há décadas se instalou na Irlanda do Norte entre seguidores do mesmo deus: católicos e protestantes? Se hoje o catolicismo se apresenta menos violento, se deve à laicidade dos Estados no Ocidente, com as transformações decorrentes da Revolução Francesa. A Bíblia e o Corão, por exemplo, aceitam a escravidão. Qualquer um que os considere guias morais deve ser a favor da escravidão. Não há uma única linha no Novo Testamento que denuncie a iniquidade da escravidão. São Paulo até aconselha aos escravos que sirvam bem aos seus senhores e sirvam especialmente bem aos seus senhores cristãos. É desnecessário dizer que a Bíblia e o Corão, além de não servirem como guias, em termos de moralidade, também não são autoridade em física, astronomia ou economia. A Igreja Católica, só para ficarmos em alguns poucos exemplos, revela sua violência, sempre que faz suas indignações seletivas. Durante e após a II Guerra Mundial, ela excomungou todos os comunistas e nunca excomungou um único nazista. Hitler nunca foi excomungado assim como os ideólogos do nazismo e os membros do partido. A Igreja Católica somente demonstra o que ela foi e é, colocando-se sempre ao lado dos fortes, dos poderosos, da colaboração. Ela não resiste. Ela não se preocupa com os pobres.
Mais um exemplo de violência? Há um ano o bispo de Recife, afirmou que o estrupo é menos grave que o aborto. Quando alguém lhe perguntou por que o padastro que estuprou a menina não foi excomungado, ele respondeu que "dar a morte é mais grave". Dar a morte a um feto é mais grave que o estupro e a pedofilia? O feto é um ser potencialmente vivo que está programado para se tornar uma pessoa, mas não é uma pessoa. Antes que se torne um ser humano, pode-se praticar o aborto e, sobretudo, nestas condições, parece-me um ato evidente.
No "Catecismo da Igreja Católica" está escrito, explicitamente, que, em alguns casos extremos, pode-se aplicar a pena de morte. É uma questão de princípio: não se defende a pena de morte quando se é cristão. E ainda querem que acreditemos que defendem a vida quando se defende, ao mesmo tempo, a pena de morte? A Igreja Católica defendeu a vida ao dar a bênção às bombas atômicas que explodiram em Hiroshima e Nagasaki? Ela defendeu a vida ao dar a bênção às armas que serviram para assassinar os republicanos espanhóis durante a Guerra da Espanha? A Igreja pretende defender a vida, mas o que ela defende é o poder em vigor. Na verdade, o que fascina a Igreja é a morte. É a morte que lhe interessa.
Para terminar, uma observação quanto ao fato de José Rodrigues dos Santos, ter ignorado a pacífica comunidade muçulmana que vive em Moçambique ao passar (inadvertidamente?) o recado de que a religião muçulmana é violenta: O convívio intenso de crenças inconciliáveis deve levar as pessoas a compreender que tais crenças são produtos de acidentes históricos, são contingenciais, são criadas pelo homem e, portanto, não são o que pregam ser. Judeus e cristãos, por exemplo, não podem estar ambos certos porque o núcleo de suas crenças é contraditório. Na verdade, eles estão equivocados sobre muitas coisas, exatamente como estavam antes os adoradores dos deuses egípcios ou gregos. Ou os adoradores de milhares de deuses que morreram durante a longa e escura noite da superstição e da ignorância humana. Em qualquer lugar que os seres humanos façam um esforço honesto para chegar à verdade, nosso discurso transcende o sectarismo religioso. Não há física cristã, álgebra muçulmana. No futuro, não haverá nada como espiritualidade muçulmana ou ética cristã. Se há verdades espirituais ou éticas a serem descobertas, e tenho certeza de que há, elas vão transcender os acidentes culturais e as localizações geográficas. Falando honestamente, esse é o único fundamento sobre o qual podemos erguer uma civilização verdadeiramente global.

0 comentários:

  © Blogger template 'Solitude' by Ourblogtemplates.com 2008

Back to TOP