sexta-feira, 29 de julho de 2016

José de Sousa Miguel Lopes - Encontro de culturas e utopia: a poética de Tomás Gonzaga e Mia Couto

Ilha de Moçambique (no norte do país) para onde foi desterrado e onde morreu o inconfidente mineiro Tomás Antônio Gonzaga

Encontro de culturas e utopia: a poética de Tomás Gonzaga e Mia Couto*

José de Sousa Miguel Lopes

Quase dois séculos separam dois poemas escritos em Moçambique por Tomás Gonzaga(1) e Mia Couto(2). Os dois poemas revelam fortes similitudes no que concerne à temática do encontro cultural e o que desse encontro emerge como esperança e busca de identidade.
Escrita na Ilha de Moçambique(3), a carta-poema “Os africanos peitos caridosos”(4) que Gonzaga dirige a um amigo, deixa transparecer sua amargura, pelas difíceis provações a que foi submetido por aqueles que o puniram, ao mesmo tempo que ergue sua voz para manifestar a fraternidade recebida do povo que o acolheu. No interior do poema, marcam sua presença os traços esperançosos, perpassados por uma forte carga utópica.

A Moçambique aqui vim deportado.
Descoberta a cabeça ao sol ardente;
Trouxe por irisão duro castigo
Ante a africana, pia boa gente.
Graças, Alcino amigo,
Graças à nossa estrela!
Não esmolei, aqui não se mendiga;
Os africanos peitos caridosos
Antes que a mão infeliz lhe estenda,
A socorrê-lo correm pressurosos.
Graças, Alcino amigo,
Graças à nossa estrela!

Nesta busca de diálogo com o outro, nos laços que a língua tece, revelam-se as marcas fortíssimas do encontro entre a cultura de dois povos. Falas e gentes, culturas e povos reencontram-se, na encruzilhada secular desta Ilha, incrustada no Índico, mirando o Oriente, na reconciliação entre Caliban e Próspero, aglutinando e resguardando, como manancial de que somos tributários à incomensurável distância, o repositório de uma memória que a singulariza.
O moçambicano Mia Couto parece fazer ecoar a serena condição humana do encontro, desnudando em seu “Poema Mestiço”(5) esta busca de identidade pela mediação do diálogo entre as culturas:

Escrevo mediterrâneo
na voz do índico

penso norte
no sereno azul
do coração a sul

sou
na praia do oriente
a areia náufraga do ocidente

hei-de
começar mais tarde

por ora
sou a pegada a crescer
do passo por acontecer.

Nas vozes de Gonzaga e Couto, o que sugere espontaneamente aos ouvidos ou à memória de quem as ouve, é a forma entre todas arquétipa, da viagem, do viajante. E com elas, e nelas, a imagem do barco.
O de Ulisses, naturalmente que um dia servirá a Gonzaga para regressar à sua Ítaca, à terra de onde partiu, às Marílias que a lembram, de onde mais fiel que o herói homérico afinal nunca partiu.
O de Couto, que na rosa-dos-ventos procura uma síntese entre racionalidade e paixão, numa viagem iniciada no ocidente e que no oriente parece ter o seu inevitável destino.
Mas lembram também aquele barco onde, como todos nós, filhos de uma Modernidade há muito sem princípios nem margens, já nasceram embarcados. O barco da condição humana, obrigado a encontrar com a viagem o porto sempre por achar, mas igualmente o mais próximo do coração, da vida, da História, o barco-Brasil, o barco-Moçambique.
Exilado em Moçambique está Gonzaga, o poeta, não sua poesia. De exílios vários vivemos esse exílio que todos somos de uma pátria imaginada ou perdida. Talvez o pior seja o exílio entre os seus.
Não há desesperança da humanidade, nem cedência à tentação de renunciar à esperança. Tomás Gonzaga, como Mia Couto, carrega consigo o sonho. Entre os moçambicanos, no oriente africano, esteve como estão sempre os poetas, solitário, mas também invisivelmente acompanhado pelo “africanos peitos caridosos”. O poema ecoa no silêncio dos brasileiros e moçambicanos, que lendo-se nele se revêm e buscam a estrela. Onde não existe o sonho, dizia alguém, não te demores! Onde não exista uma utopia que abra possibilidades, encontramo-nos num presente estancado, estéril, porque as culturas que não têm utopia retrocedem rapidamente ao passado, pois o presente só está plenamente vivo na tensão entre o passado e o futuro.
A ação humana só adquire todo o seu sentido quando é considerada um movimento incessante de totalização. A cada etapa, o homem tenta projetar diante de si o estado que o deixaria mis próximo da totalidade. Esse estado só pode estar presente no domínio do imaginário, pois ainda não existe. E, para que permaneça como simples variante do estado atual, é preciso ser utópico, ou seja, radicalmente outro. Nenhuma mudança verdadeiramente inovadora se torna possível sem o exercício da utopia.
Como Gonzaga e Couto, quase dois séculos depois, moçambicanos e brasileiros (ao fim e ao cabo, todos os povos) continuam tendo como bússola a utopia. Não serão as estrelas primordiais a luta e a esperança? Mas não há luta nem esperanças solitárias. Não há solidão inexpugnável.
São a luta e a esperança que dão sentido à estrela de que falava o poeta, mas mais do que estrela o que se configura é a valorização do Homem. Talvez por isso Joan-Joseph Tharrats afirme que

Um homem vale muito mais do que uma estrela. Um homem está feito de barro, de lágrimas e de sangue. Uma estrela, em compensação, só está composta por diamantes. Apesar das manchas e das impurezas, das suas fraquezas e dos seus pecados, os homens são as estrelas das estrelas.

Todos os caminhos conduzem ao mesmo ponto: à comunicação do que somos.

(1)Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), português do Porto, veio para ao Brasil aos sete anos, e foi, com Cláudio Manuel da Costa, um dos expoentes do arcadismo mineiro, escola poética de inspiração neoclássica, que valorizava o equilíbrio das formas, a expressão harmônica e os temas bucólicos e pastoris. Bacharelou-se em Direito, em 1768, na Universidade de Coimbra. Foi transferido para o Brasil, onde ocupou o cargo de ouvidor de Vila Rica. Segundo o professor Fernando Teixeira de Andrade, coordenador de literatura do curso Objetivo de São Paulo ele era “o mais bem equipado intelectualmente dos que participaram da Inconfidência Mineira” (ANDRADE, 1997). Em Moçambique veio a casar-se com uma rica senhora, vivendo da advocacia e de um emprego na alfândega (SAÚTE, & SOPA, 1992, p. 183). Deportado para Moçambique em 22/05/1792, para cumprir uma pena de dez anos, Gonzaga morreu em 1810, no ano em que a Ilha recebeu a honra de cidade (CHIAVENATTO, 1989, p. 76). Numa primeira fase, ele articulava o gênero europeu e o lirismo com notas sobre a paisagem real de Minas Gerais (referências à paisagem mineira, à cana-de-açúcar, à criação de gado e à mineração) através de traços de otimismo, narcisismo e esperança na vida futura. Seu lirismo é tratado de forma pessoal em seu livro “Marília de Dirceu”, publicado em 1792, escrito dentro das convenções do arcadismo (temas latinos que vêm da tradição de Horácio - 68-8 a. C. - que são o bucolismo e o pastoril) e se refere a um episódio sentimental do próprio Gonzaga. Contudo, a figura de Marília nem sempre é a projeção da noiva de Gonzaga, Maria Dorotéia Joaquina de Seixas, sendo algumas vezes uma pastora convencional. Numa segunda fase (correspondente ao período em que se encontrava na prisão) sua poesia está impregnada de revolta e amargura.

(2) Mia Couto nasceu na cidade da Beira em 1955. Tem digressões pela poesia, conto, crónica e romance. No Brasil tem dois romances publicados, tendo um deles “Terra Sonâmbula” sido eleito pela Associação dos Críticos Literários de São Paulo, o melhor romance estrangeiro publicado no Brasil em 1995. Sua escrita sofre influências de Guimarães Rosa.

(3) Nesta ilha, situada no norte de Moçambique, aportou Vasco da Gama na sua viagem a caminho da Índia e, mais tarde, também o grande poeta Luís de Camões ali permaneceu entre 1567 e 1569, ocupando-se na composição de Os Lusíadas. Segundo o historiador Alexandre Lobato por volta de 1762 principia o grande desenvolvimento urbano da Ilha. “A liberalização do comércio trouxera à Ilha os armadores - mercadores do Brasil que então iam tomando gradualmente conta dos circuitos comerciais ultramarinos portugueses e outorgando ao Brasil uma posição de grande relevo social e expressivo valor econômico. Estabelecem-se mesmo íntimas relações entre o Brasil e Moçambique, que torna a ter uma burguesia, mas de apoio brasileiro, no último quartel do século XVIII, com grandes ramificações na Índia (...) A exportação de escravos crescera desmedidamente no último quartel do século XVIII, e a Ilha, como Quelimane, como o Ibo, tornara-se importante porto de exportação. De repente Moçambique é abalada pela notícia da Independência do Brasil em 1822, o que deixa prever o fim da exportação de escravos por se tornar país estrangeiro. E de fato, o último navio brasileiro que esteve legalmente a carregar escravos em Moçambique para o Brasil, fê-lo em 1831” (LOBATO,1992, p.175-176).

(4) In: SAÚTE & SOPA, 1992, p. 128

(5) In: MENDONÇA & SAÚTE, 1989, p.318-9

Referências

ANDRADE, Fernando Teixeira de. Biblioteca traz “Marília de Dirceu”, de Tomás Gonzaga. In: Folha de São Paulo, 31 de Agosto de 1997.

CHIAVENATTO, Júlio José. As várias faces da Inconfidência Mineira. São Paulo, Contexto, 1989.

LOBATO, Alexandre. Ilha de Moçambique: notícia histórica. In: SAÚTE, Nelson & SOPA, António. A Ilha de Moçambique pela voz dos poetas. Lisboa, Edições 70, 1992.

MENDONÇA, Fátima & SAÚTE, Nelson. Antologia da Nova Poesia Moçambicana. Maputo, AEMO, 1989.

SAÚTE, Nelson & SOPA, António. A Ilha de Moçambique pela voz dos poetas. Lisboa, Edições 70, 1992.



*Texto originalmente publicado no Jornal “Estado de Minas”. Belo Horizonte, 1998, p.5.

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