José de Sousa Miguel Lopes, Inês Assunção de Castro Teixeira & Jorge Larrosa: "A infância vai ao cinema"
A coletânea “A infância vai ao cinema”,
organizada por José de Sousa Miguel Lopes & Inês Assunção de Castro
Teixeira conta ainda com a participação de Jorge Larrosa (Universidade de
Barcelona) como co-organizador e autor. Trata-se do quarto volume da Coleção
“Educação e Cinema” da Autêntica Editora. Esta Coleção tem procurado ir ao encontro dos
educandos e dos educadores, dos profissionais da educação em geral e, por que
não, dos pais e demais responsáveis e interessados pela educação das novas
gerações. Com
este projeto não se pretende “escolarizar” o cinema ou “didatizá-lo”. Não
estamos e não queremos concebê-lo e restringi-lo a uma instrumento ou recurso
didático-escolar tomando-o como um estratégia de inovação tecnológica na
educação e no ensino. Isto seria reduzi-lo por demais. Ao contrário, por si só,
porque permite a experiência estética, porque fecunda e expressa dimensões da
sensibilidade, das múltiplas linguagens e inventividade humanas, o cinema é
importante para a educação e para os educadores, por ele mesmo,
independentemente de ser uma fonte de conhecimento e de servir como recurso
didático-pedagógico ou como introdução de inovação tecnológica na escola. Com
isto não estamos dizendo que o cinema não ensina ou que não possa ser utilizado
como tal.
Este olhar também orientou nossa opção em
relação aos contornos e à montagem das várias Coletâneas que se inscrevem, a um
só tempo, no campo do Cinema, da Estética, da Educação e das relações entre
eles. De que direção se trata? A que estamos nos referindo? Com isto queremos
dizer que estamos conscientes e acompanhando outras publicações, eventos e
debates que têm feito a aproximação entre a Educação e o Cinema, em direções
diferentes desta que se expressa nas escolhas, natureza e montagem dos vários
volumes da Coleção. Embora reconheçamos a importância, o valor e a necessidade
destas iniciativas, com as quais pretendemos somar, ao invés de optarmos por
uma discussão teórico-conceitual destes dois campos e suas relações, qual seja,
ao invés de optarmos por uma discussão das potencialidades do cinema na e para
a Educação, para a escola e para os processos de ensino-aprendizagem,
coerentemente com a nossa direção e perspectiva acerca de ambos e suas
relações, optamos por fazer Coletâneas que trouxessem o cinema propriamente
dito, qual seja, as películas cuidadosamente escolhidas para compor os livros.
Selecionamos um conjunto de bons filmes que foram comentados, analisados,
discutidos, sentidos, contemplados pelos autores dos artigos de cada coletânea.
E como estamos inseridos, sensibilizados e comprometidos com as questões da
Educação e da escola, optamos por trazer às Coletâneas, obras cinematográficas
que passam por estas questões, além de escolhermos educadores e pesquisadores
do campo da educação para escreverem os trabalhos sobre as películas.
A Coletânea “A infância vai ao cinema”
que está sendo lançada – estrutura-se em dois conjuntos de trabalhos
apresentados em duas partes. A primeira contém 09 artigos que discutem
aspectos, questões e temáticas da infância no cinema, remetendo-se, cada um
deles, a vários filmes A segunda parte, contém 06 trabalhos e, diferentemente
do volume anterior, segue a linha dos dois que o precederam, uma vez que cada
um dos artigos discute apenas um filme. Para além de educadores brasileiros, colaboram neste
volume autores da Espanha, Argentina e Moçambique.
Entre os filmes que estão abordados e
discutidos, salientamos “O espírito da colméia”, “Cinema Paradiso”,
“Paisagem na neblina”, “O passo suspenso da cegonha”, “A eternidade e um dia”,
“Amarcord”, “Fanny e Alexandre”, “A infância de Ivan”, “Onde está a casa de meu
amigo”, O Tesouro do Barba Ruiva”, “Papai precisa casar’, “Ponette”, “A Outra
Face”, “A língua das mariposas”, “Como nascem os anjos”, “Zero de conduta”, “O
balão branco”, “A guerra de botões”, “Encantadora de baleias” e “Abril
Despedaçado”.
Observando as crianças nas histórias que os
filmes contam, nas cenas filmadas, nas imagens e nos gestos em movimento, os
autores debruçam-se sobre as orientações políticas e ideológicas dos contextos
em que estão inseridas, sobre a situação social mostrada, a pluralidade
cultural, as interações entre meninos e meninas, entre outros pontos. Destaca-se, ainda,
que no cinema nos encontramos cara a cara com os rostos das crianças com um
rosto não é somente algo que se oferece ao olhar, mas que também, e, sobretudo,
olha. Por isso esse cara a cara com o rosto enigmático da infância não se
refere somente a que o cinema olha e nos ensina a olhar os gestos e os rostos
das crianças, senão que o cinema se enfrenta e nos enfrenta a um olhar
infantil, ao que seria um olhar infantil sobre o mundo. É como se o cinema não
somente olhasse as crianças, senão que tratasse de aproximar-se de um olhar
infantil, tentasse reproduzir, ou inventar, um olhar de criança. Às vezes o
cinema dá a ver o mundo, o real, desde os olhos de uma criança. Nada mais difícil do que olhar uma
criança. Nada mais difícil do que olhar com olhos de criança. Nada mais difícil
do que sustentar o olhar de uma criança. Nada mais difícil do que estar à
altura deste olhar. Nada mais difícil do que encarar esse olhar. Parece-nos que
se trata de desnaturalizar o olhar, de liberar os olhos, de aprender a olhar
com olhos de criança. A criança é portadora de um olhar livre, indisciplinado,
quiçá inocente, quiçá selvagem, é portadora de uma forma de olhar que ainda é
capaz de surpreender aos olhos. E é a criança quem ensina o adulto a olhar as
coisas como pela primeira vez, sem os hábitos do olhar constituído. Um olhar
que simplesmente olha. E isso talvez seja o que perdemos. Desta maneira, com “A
infância vai ao cinema” esperamos ter aberto possibilidades de olhar a criança
aprendendo com ela, que olha as coisas como pela primeira vez, sem opiniões e
hábitos do olhar constituído. Um olhar que simplesmente olha, retomando Wim
Wenders.
PREFÁCIO
A primeira vez em que vi o filme O tambor,
do diretor alemão Volker Schlondorff, sabia que estava diante de uma obra onde
infância, cinema e uma aguda crítica da cultura contemporânea diziam-se numa
linguagem diferente. Sua força, seu silêncio, seus ditos e não ditos, os
significados contidos no relógio interditado e na parada nazista que,
inesperadamente, se transformava em uma suave e harmoniosa dança,
materializavam – pode-se dizer que a imagem é material? – uma denúncia da
sociedade moderna, do Estado e da condição humana.
Revi muitas vezes esse filme, como muitos
outros que nas últimas décadas têm na infância como alegoria e nas crianças
como atores sociais a sua substância. E fui aprendendo com esta experiência do
cinema, uma outra possibilidade de produção sobre a infância, de agir ético e
de sensibilidade estética que, nas palavras de Mikhail Bakhtin, constituem
nossa dimensão humana, ou seja, o conhecimento, a arte e a própria vida.
Aprendi que no cinema encontramos ora um outro modo de conhecer as crianças,
ora a expressão do mundo da maneira como as crianças o vêem, escutam,
experimentam, ora um olhar infantil que pode ajudar a compreender o mundo e a
subvertê-lo.
Assim, a partir do momento em que a “infância
vai ao cinema”, o campo de estudos da infância se amplia e adensa, seja porque
esta maneira diversa de falar das crianças pode ser escutada à medida que se
revela sua fala, seja porque seu olhar educa o nosso, invertendo uma direção,
que há séculos marca a interação entre as gerações. Observando as crianças nas
histórias que os filmes contam, nas cenas filmadas, nas imagens e nos gestos em
movimento, descortinam-se as orientações políticas e ideológicas dos contextos
em que estão inseridas, sua situação social, a pluralidade cultural, a
diferença de idade e tamanho, as religiões e visões de mundo, as interações
entre meninos e meninas, as relações com os adultos ou jovens, o poder e o
controle institucional, a brincadeira e o trabalho, a seriedade e o riso. Ao
mesmo tempo e de modo contraditório, a miséria, o abandono, a violência das
crianças e contra as crianças, a impotência, o olhar triste, a magreza, o nariz
escorrendo, coexistem com o papel de humanização dos adultos que as crianças
desempenham, nos filmes como na vida. Além disso, o cinema mostra sua inserção
na família, os constrangimentos que lhes são impostos na escola, os desejos e
os sentimentos que dirigem às pessoas, às coisas, aos animais e ao próprio
cinema, suas crenças, mitos e devoção, a dilaceração que sofrem nas ruas, na
criminalidade ou na guerra de que muito cedo participam - e a guerra é sempre
cedo demais, mesmo para os adultos, já que seu tempo é o tempo do medo e da
destruição.
O cinema olha a infância e ao mostrar-se
conta a história, a de cada um e a de todos nós. Ora, falando sobre infância e
história, Walter Benjamin já nos alertava para o fato de que o homem faz
história, de que existe a possibilidade de fazer história, porque temos
infância. Foi isso o que vi e vivi na tela das sessões onde O tambor e a
experiência por ele evocada – na minha trajetória pessoal - de Fanny e
Alexandre, Brinquedo Proibido, O garoto, A família, Adeus meninos; Europa,
Europa - filhos da guerra mas, sobretudo, Cria Cuervos, as três irmãs
brincando e sendo a toda hora interrompidas pelos adultos. Cria Cuervos,
seu sofrimento e encantamento, a música rodando, a fotografia na parede, a menina
e a avó, a saúde e a doença, ser criança e ser gente grande, o homem e a
mulher, ser criança e ser gente grande, a sensualidade e o medo, a vida e a
morte.
Pois bem, os textos contidos nesta coletânea
tratam dessas e de muitas outras questões. Escritos por intelectuais de
diferentes origens, com histórias profissionais e experiências diferenciadas
com o cinema e sobre o cinema, os artigos e as análises apresentadas se referem
às crianças e às fronteiras, à infância como horizonte de certo cinema
contemporâneo, aos aportes sobre a infância e sua experiência religiosa, à
Infância, memória e cinema, ao cinema que
devém criança, à celebração da revolta, à infância que olha e constrói,
aos desafios de filmar uma criança na construção de um espaço comum, da infância
perdida, de contos de fadas às avessas, de crianças e aprendizagens pelos
cantos da cidade, de um país despedaçado, de um encantar as baleias e de
guerras de botões. Os textos tratam da infância e de cinema feito a partir de diferentes pontos de vista, condições de
produções, lugares de filmagem e tempos de imaginação. A escrita que lemos fala
daquele que não fala e que fica exposto numa linguagem que se faz – no melhor
sentido que encontro – infantil, porque reconstrói do lixo (outra evocação que
faço ao conceito de história e de infância em Benjamin), vira pelo avesso a
ordem das coisas, descontinua, desvia, revolui.
Neste sentido, “A Infância vai ao Cinema” -
livro organizado por Inês Teixeira, Jorge Larrosa e José Miguel Lopes – ocupa
um espaço onde a produção é escassa até hoje, no Brasil, e traz, pela qualidade
de sua escrita e pela ousadia de sua abordagem, uma significativa contribuição
para todos aqueles que estudam temas relativos à filosofia, à sociologia (e à
sociologia da infância), à antropologia, educação, psicologia e psicanálise,
aos estudos culturais. Por outro lado, a leitura desta coletânea certamente irá
contribuir para a ação e reflexão de profissionais que atuam em áreas
pertinentes à infância, cinema, produção cultural, educação, políticas públicas
e formação de professores. Esta coletânea - quarto volume da Coleção “Educação,
Cultura e Cinema”, concebida e organizada por Inês Teixeira e José Miguel Lopes
– tem, portanto, um papel relevante a desempenhar na produção intelectual
contemporânea. Parabenizo os organizadores e autores pelo seu fôlego e pelo
resultado desta produção.
Defendendo o polêmico argumento de que o
cinema não é o cinema, o pintor, poeta, ensaísta, jornalista e cineasta Píer
Paolo Pasolini, intelectual que marca a minha geração pela sua trajetória e
pela sua tragédia, escreveu: “eu amo o cinema porque com o cinema fico
sempre no nível da realidade. É uma espécie de ideologia pessoal, de vitalismo,
de amor pelo viver dentro das coisas... A raiz, profunda e subterrânea dessa
minha paixão é esse meu amor, irracional de certa forma, pela realidade:
expressando-me com o cinema não saio nunca da realidade, estou sempre no meio
das coisas, dos homens, daquilo que mais me interessa na vida, isto é, a
própria vida”[1].
Que a sensibilidade de Schlondorff e a
alegoria da infância presente n´O Tambor, de um lado, e o olhar arguto
de Pasolini, sua crítica e a lucidez que machuca, de outro, nos inspirem na
leitura desta importante coletânea.
Sonia Kramer
28 de setembro de 2006
[1] PASOLINI, Pier Paolo. Com Pier Paolo
Pasolini. Roma, Enrico Magrelli Ed./Bulzoni, 1977, p.79-80.
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