domingo, 3 de julho de 2016

José de Sousa Miguel Lopes, Inês Assunção de Castro Teixeira & Jorge Larrosa: "A infância vai ao cinema"

A infância vai ao cinema

A coletânea “A infância vai ao cinema”, organizada por José de Sousa Miguel Lopes & Inês Assunção de Castro Teixeira conta ainda com a participação de Jorge Larrosa (Universidade de Barcelona) como co-organizador e autor. Trata-se do quarto volume da Coleção “Educação e Cinema” da Autêntica Editora. Esta Coleção tem procurado ir ao encontro dos educandos e dos educadores, dos profissionais da educação em geral e, por que não, dos pais e demais responsáveis e interessados pela educação das novas gerações. Com este projeto não se pretende “escolarizar” o cinema ou “didatizá-lo”. Não estamos e não queremos concebê-lo e restringi-lo a uma instrumento ou recurso didático-escolar tomando-o como um estratégia de inovação tecnológica na educação e no ensino. Isto seria reduzi-lo por demais. Ao contrário, por si só, porque permite a experiência estética, porque fecunda e expressa dimensões da sensibilidade, das múltiplas linguagens e inventividade humanas, o cinema é importante para a educação e para os educadores, por ele mesmo, independentemente de ser uma fonte de conhecimento e de servir como recurso didático-pedagógico ou como introdução de inovação tecnológica na escola. Com isto não estamos dizendo que o cinema não ensina ou que não possa ser utilizado como tal.
Este olhar também orientou nossa opção em relação aos contornos e à montagem das várias Coletâneas que se inscrevem, a um só tempo, no campo do Cinema, da Estética, da Educação e das relações entre eles. De que direção se trata? A que estamos nos referindo? Com isto queremos dizer que estamos conscientes e acompanhando outras publicações, eventos e debates que têm feito a aproximação entre a Educação e o Cinema, em direções diferentes desta que se expressa nas escolhas, natureza e montagem dos vários volumes da Coleção. Embora reconheçamos a importância, o valor e a necessidade destas iniciativas, com as quais pretendemos somar, ao invés de optarmos por uma discussão teórico-conceitual destes dois campos e suas relações, qual seja, ao invés de optarmos por uma discussão das potencialidades do cinema na e para a Educação, para a escola e para os processos de ensino-aprendizagem, coerentemente com a nossa direção e perspectiva acerca de ambos e suas relações, optamos por fazer Coletâneas que trouxessem o cinema propriamente dito, qual seja, as películas cuidadosamente escolhidas para compor os livros. Selecionamos um conjunto de bons filmes que foram comentados, analisados, discutidos, sentidos, contemplados pelos autores dos artigos de cada coletânea. E como estamos inseridos, sensibilizados e comprometidos com as questões da Educação e da escola, optamos por trazer às Coletâneas, obras cinematográficas que passam por estas questões, além de escolhermos educadores e pesquisadores do campo da educação para escreverem os trabalhos sobre as películas.
A Coletânea “A infância vai ao cinema” que está sendo lançada – estrutura-se em dois conjuntos de trabalhos apresentados em duas partes. A primeira contém 09 artigos que discutem aspectos, questões e temáticas da infância no cinema, remetendo-se, cada um deles, a vários filmes A segunda parte, contém 06 trabalhos e, diferentemente do volume anterior, segue a linha dos dois que o precederam, uma vez que cada um dos artigos discute apenas um filme. Para além de educadores brasileiros, colaboram neste volume autores da Espanha, Argentina e Moçambique.
Entre os filmes que estão abordados e discutidos, salientamos “O espírito da colméia”, “Cinema Paradiso”, “Paisagem na neblina”, “O passo suspenso da cegonha”, “A eternidade e um dia”, “Amarcord”, “Fanny e Alexandre”, “A infância de Ivan”, “Onde está a casa de meu amigo”, O Tesouro do Barba Ruiva”, “Papai precisa casar’, “Ponette”, “A Outra Face”, “A língua das mariposas”, “Como nascem os anjos”, “Zero de conduta”, “O balão branco”, “A guerra de botões”, “Encantadora de baleias” e “Abril Despedaçado”.
Observando as crianças nas histórias que os filmes contam, nas cenas filmadas, nas imagens e nos gestos em movimento, os autores debruçam-se sobre as orientações políticas e ideológicas dos contextos em que estão inseridas, sobre a situação social mostrada, a pluralidade cultural, as interações entre meninos e meninas, entre outros pontos. Destaca-se, ainda, que no cinema nos encontramos cara a cara com os rostos das crianças com um rosto não é somente algo que se oferece ao olhar, mas que também, e, sobretudo, olha. Por isso esse cara a cara com o rosto enigmático da infância não se refere somente a que o cinema olha e nos ensina a olhar os gestos e os rostos das crianças, senão que o cinema se enfrenta e nos enfrenta a um olhar infantil, ao que seria um olhar infantil sobre o mundo. É como se o cinema não somente olhasse as crianças, senão que tratasse de aproximar-se de um olhar infantil, tentasse reproduzir, ou inventar, um olhar de criança. Às vezes o cinema dá a ver o mundo, o real, desde os olhos de uma criança. Nada mais difícil do que olhar uma criança. Nada mais difícil do que olhar com olhos de criança. Nada mais difícil do que sustentar o olhar de uma criança. Nada mais difícil do que estar à altura deste olhar. Nada mais difícil do que encarar esse olhar. Parece-nos que se trata de desnaturalizar o olhar, de liberar os olhos, de aprender a olhar com olhos de criança. A criança é portadora de um olhar livre, indisciplinado, quiçá inocente, quiçá selvagem, é portadora de uma forma de olhar que ainda é capaz de surpreender aos olhos. E é a criança quem ensina o adulto a olhar as coisas como pela primeira vez, sem os hábitos do olhar constituído. Um olhar que simplesmente olha. E isso talvez seja o que perdemos. Desta maneira, com “A infância vai ao cinema” esperamos ter aberto possibilidades de olhar a criança aprendendo com ela, que olha as coisas como pela primeira vez, sem opiniões e hábitos do olhar constituído. Um olhar que simplesmente olha, retomando Wim Wenders.

PREFÁCIO

A primeira vez em que vi o filme O tambor, do diretor alemão Volker Schlondorff, sabia que estava diante de uma obra onde infância, cinema e uma aguda crítica da cultura contemporânea diziam-se numa linguagem diferente. Sua força, seu silêncio, seus ditos e não ditos, os significados contidos no relógio interditado e na parada nazista que, inesperadamente, se transformava em uma suave e harmoniosa dança, materializavam – pode-se dizer que a imagem é material? – uma denúncia da sociedade moderna, do Estado e da condição humana.
Revi muitas vezes esse filme, como muitos outros que nas últimas décadas têm na infância como alegoria e nas crianças como atores sociais a sua substância. E fui aprendendo com esta experiência do cinema, uma outra possibilidade de produção sobre a infância, de agir ético e de sensibilidade estética que, nas palavras de Mikhail Bakhtin, constituem nossa dimensão humana, ou seja, o conhecimento, a arte e a própria vida. Aprendi que no cinema encontramos ora um outro modo de conhecer as crianças, ora a expressão do mundo da maneira como as crianças o vêem, escutam, experimentam, ora um olhar infantil que pode ajudar a compreender o mundo e a subvertê-lo.
Assim, a partir do momento em que a “infância vai ao cinema”, o campo de estudos da infância se amplia e adensa, seja porque esta maneira diversa de falar das crianças pode ser escutada à medida que se revela sua fala, seja porque seu olhar educa o nosso, invertendo uma direção, que há séculos marca a interação entre as gerações. Observando as crianças nas histórias que os filmes contam, nas cenas filmadas, nas imagens e nos gestos em movimento, descortinam-se as orientações políticas e ideológicas dos contextos em que estão inseridas, sua situação social, a pluralidade cultural, a diferença de idade e tamanho, as religiões e visões de mundo, as interações entre meninos e meninas, as relações com os adultos ou jovens, o poder e o controle institucional, a brincadeira e o trabalho, a seriedade e o riso. Ao mesmo tempo e de modo contraditório, a miséria, o abandono, a violência das crianças e contra as crianças, a impotência, o olhar triste, a magreza, o nariz escorrendo, coexistem com o papel de humanização dos adultos que as crianças desempenham, nos filmes como na vida. Além disso, o cinema mostra sua inserção na família, os constrangimentos que lhes são impostos na escola, os desejos e os sentimentos que dirigem às pessoas, às coisas, aos animais e ao próprio cinema, suas crenças, mitos e devoção, a dilaceração que sofrem nas ruas, na criminalidade ou na guerra de que muito cedo participam - e a guerra é sempre cedo demais, mesmo para os adultos, já que seu tempo é o tempo do medo e da destruição.
O cinema olha a infância e ao mostrar-se conta a história, a de cada um e a de todos nós. Ora, falando sobre infância e história, Walter Benjamin já nos alertava para o fato de que o homem faz história, de que existe a possibilidade de fazer história, porque temos infância. Foi isso o que vi e vivi na tela das sessões onde O tambor e a experiência por ele evocada – na minha trajetória pessoal - de Fanny e Alexandre, Brinquedo Proibido, O garoto, A família, Adeus meninos; Europa, Europa - filhos da guerra mas, sobretudo, Cria Cuervos, as três irmãs brincando e sendo a toda hora interrompidas pelos adultos. Cria Cuervos, seu sofrimento e encantamento, a música rodando, a fotografia na parede, a menina e a avó, a saúde e a doença, ser criança e ser gente grande, o homem e a mulher, ser criança e ser gente grande, a sensualidade e o medo, a vida e a morte.
Pois bem, os textos contidos nesta coletânea tratam dessas e de muitas outras questões. Escritos por intelectuais de diferentes origens, com histórias profissionais e experiências diferenciadas com o cinema e sobre o cinema, os artigos e as análises apresentadas se referem às crianças e às fronteiras, à infância como horizonte de certo cinema contemporâneo, aos aportes sobre a infância e sua experiência religiosa, à Infância, memória e cinema, ao cinema que devém criança, à celebração da revolta, à infância que olha e constrói, aos desafios de filmar uma criança na construção de um espaço comum, da infância perdida, de contos de fadas às avessas, de crianças e aprendizagens pelos cantos da cidade, de um país despedaçado, de um encantar as baleias e de guerras de botões. Os textos tratam da infância e de cinema feito a partir de diferentes pontos de vista, condições de produções, lugares de filmagem e tempos de imaginação. A escrita que lemos fala daquele que não fala e que fica exposto numa linguagem que se faz – no melhor sentido que encontro – infantil, porque reconstrói do lixo (outra evocação que faço ao conceito de história e de infância em Benjamin), vira pelo avesso a ordem das coisas, descontinua, desvia, revolui.
Neste sentido, “A Infância vai ao Cinema” - livro organizado por Inês Teixeira, Jorge Larrosa e José Miguel Lopes – ocupa um espaço onde a produção é escassa até hoje, no Brasil, e traz, pela qualidade de sua escrita e pela ousadia de sua abordagem, uma significativa contribuição para todos aqueles que estudam temas relativos à filosofia, à sociologia (e à sociologia da infância), à antropologia, educação, psicologia e psicanálise, aos estudos culturais. Por outro lado, a leitura desta coletânea certamente irá contribuir para a ação e reflexão de profissionais que atuam em áreas pertinentes à infância, cinema, produção cultural, educação, políticas públicas e formação de professores. Esta coletânea - quarto volume da Coleção “Educação, Cultura e Cinema”, concebida e organizada por Inês Teixeira e José Miguel Lopes – tem, portanto, um papel relevante a desempenhar na produção intelectual contemporânea. Parabenizo os organizadores e autores pelo seu fôlego e pelo resultado desta produção.
Defendendo o polêmico argumento de que o cinema não é o cinema, o pintor, poeta, ensaísta, jornalista e cineasta Píer Paolo Pasolini, intelectual que marca a minha geração pela sua trajetória e pela sua tragédia, escreveu: “eu amo o cinema porque com o cinema fico sempre no nível da realidade. É uma espécie de ideologia pessoal, de vitalismo, de amor pelo viver dentro das coisas... A raiz, profunda e subterrânea dessa minha paixão é esse meu amor, irracional de certa forma, pela realidade: expressando-me com o cinema não saio nunca da realidade, estou sempre no meio das coisas, dos homens, daquilo que mais me interessa na vida, isto é, a própria vida[1].
Que a sensibilidade de Schlondorff e a alegoria da infância presente n´O Tambor, de um lado, e o olhar arguto de Pasolini, sua crítica e a lucidez que machuca, de outro, nos inspirem na leitura desta importante coletânea.
Sonia Kramer
28 de setembro de 2006



[1] PASOLINI, Pier Paolo. Com Pier Paolo Pasolini. Roma, Enrico Magrelli Ed./Bulzoni, 1977, p.79-80.


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