"Produzir Corpos" - Vladimir Safatle
Produzir
corpos
Vladimir Safatle
27.02.2016
O impasse profundo no qual se encontram a política e a vida
nacional expressa, à sua maneira, uma certa limitação do que poderíamos chamar
de nossa "imaginação social". Crises, como a que vivemos hoje, ligadas não
apenas ao esgotamento de um modelo de desenvolvimento chamado de "lulismo", mas também ao esgotamento dos atores
políticos da Nova República, são também crises das formas de se pensar o país.
Boa parte de nossos
principais esquemas de compreensão do Brasil foram criados nos anos 1950 e
1960. Eles se demonstraram frutíferos para mobilizar demandas de transformações
durante décadas. Foram, à sua maneira, respostas à paralisia que aprisionou o
país em vários momentos de sua história. No entanto, há momentos em que você só
consegue continuar a agir se aprender a descrever de outra forma a situação na
qual está inserido. Longe de ser um mero exercício de redescrição esta é uma
estratégia da ação para transformar situações.
Nesse sentido, gostaria de insistir que poucos países como o
Brasil demonstram, de forma tão clara, a necessidade e a dificuldade de se
criar o que poderíamos chamar de um "corpo político", ou seja, de um sistema de
implicação genérica capaz de produzir um espaço comum no qual demandas sociais
podem circular e se realizar.
Espaço comum que não é apenas um sistema de regras, mas um campo de afetos.
Em um corpo, as afecções de cada parte circulam por todos os lados, criando uma
situação na qual a indiferença é impossível. Diria que essa dificuldade
de construir corpos políticos é
um sintoma importante de um certo bloqueio de nossa imaginação social.
De certa forma, o Brasil
passou sua história moderna em luta para tentar criar um corpo político que lhe
falta, mas mais de uma vez descobriu que só sabe criá-lo de uma forma. Uma
forma frágil, cujos efeitos são profundamente ambíguos e acabam sempre por
levar a sociedade à paralisia.
Quando se fala atualmente de corpo político, lembra-se normalmente
da figura do Leviatã, de Thomas
Hobbes.Hobbes insistia
que nenhum valor é mais importante para uma nação que a unidade, a organicidade
e a regulação dos conflitos no interior de um sistema capaz de assegurar a
estabilidade. Para isso, a sociedade deveria ser compreendida como um corpo no
qual todas as partes respondem a um centro funcional, sua cabeça, onde se
encontra o poder soberano. O uso da imagem do corpo não era uma mera metáfora.
Era um conceito de forte valor
de mobilização. Mudamos nosso comportamento quando nos
compreendemos como partes de um corpo que nos engloba.
Conhecemos o uso dessa ideia de corpo político uno e orgânico na
justificativa de sociedades autoritárias. Alguém como o filósofo Claude Lefort chegou mesmo a afirmar que a democracia
deveria ser, necessariamente, um poder sem corpo. Mas poderíamos nos perguntar
se todos os corpos são necessariamente modelos de unidade, se não conhecemos
corpos que produzem formas de implicação genérica que não poderiam ser
compreendidos exatamente como unidade. Às vezes, para pensar política, nossa
lógica é demasiado representativa.
Ernesto Laclau, em um impressionante livro sobre o
populismo, chamado "A
Razão Populista", propõe, entre outras coisas, uma maneira
de pensar o populismo como a construção de um corpo a partir de uma
multiplicidade contraditória. Longe de desqualificar o populismo como alguma
forma de regressão política baseada no culto à personalidade, ele procura
compreender sua maneira de criar um campo hegemônico através da convergência de
demandas sociais contraditórias.
Lembrem de Getúlio
Vargas dizendo: "Meu maior problema não são meus
inimigos, mas meus aliados". Sua estrutura de poder era baseada na
convergência entre demandas sociais vindas de grupos em posição contraditória,
daí a dificuldade de gerir a disputa entre aliados. Algo muito parecido com o que vimos
na era Lula. Vargas só
podia sobreviver enquanto fosse um "significante vazio", ou seja,
alguém que podia levar todos a crer que, no fundo, estava ao seu lado, um pouco
como Lula. Foi
através deste arranjo frágil que Vargas criou, pela primeira vez, um corpo
político no Brasil.
Do ponto de vista estrutural, esse foi o modelo que Lula repetiu
e que chegou à exaustão quando as demandas sociais distintas começaram a se
anular de forma cada vez mais forte. Contra esse corpo político paralisado,
precisamos aprender a criar novos corpos, de maneiras novas. Pois é isso que,
de certa forma, falta
ao Brasil atual: um corpo.
FONTE: Aqui
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