"Ave-bala (de rapina) perdida" - Fernando Rios
Ave-bala
(de rapina)
perdida
(de rapina)
perdida
uma
ave-bala perdida
sem
eira nem beira
procura
um lugar
para
morar
e
quase sempre
ao
encontrar
não
faz de seu corpo-ninho
um
altar
mas
apenas
um
casto e raso velório
primeiro
repertório
para
uma nova morada
ave-bala
da cidade
não
serve de sobremesa
apenas
se apressa na procura
de
um novo corpo-ninho
e
quando encontra
promove
duas moradias
uma
para ela mesma
ave-bala
em agonia
e
uma nova casa
para
um corpo sem serventia
II
aves-balas
há muitas
soltas
ariscas
aos
bandos
nenhuma
pousa no fio
senão
por um fio
resvala
em cada corpo
onde
às vezes
ela
pousa
penando
na escuridão
das
aves-balas urbanas
não
se fala em ninho
senão
de metralhadora
dali
elas partem
se
multiplicam
se
avançam colina abaixo
resvalam
colina acima
essas
aves-balas
tão
diferentes daquelas
de
família cabralina
porque
estas aves-balas
que
escapam das carabinas
criam
uma nuvem de medo
cobrem
o sol
levam
pesares
levam
azares
levam
penares
e
se aconchegam
em
novos corpos ninhos
e
neles
as
aves-balas
ficam
para sempre
mesmo
quando retiradas
sobram
ocos
no
corpo adentro
preenchidos
apenas
com
as lágrimas
de
um corpo-ninho
que
não ressuscita
III
uma
ave-bala
é
sempre de rapina
ela
vem na surdina
e
quando chega
mais
do que espanto
abrem-se
gargantas
em
fúria divina
sem
chance
um
ser já era
mano
ou não
cidadão
ou não
polícia
ou não
traficante
ou ladrão
de
repente
____de
cara no chão
IV
uma
ave-bala
sempre
deixa um nome
numa
lápide
e
duas datas
e
lágrimas e flores
e
sonhos esparramados
e
cabelos arrancados
e
um azedo odor
de
ausências
uma
ave-bala
constrói
um vazio
num
corpo cheio
uma
ave-bala
sem
qualquer doçura
sem
qualquer pergunta
sem
qualquer pedir favor
se
aloja
e
então
o
que pode um corpo
senão
adernar
e
profundamente
sucumbir
V
uma
ave-bala
(de
rapina)
perdida
vem
desembrulhada
loucamente
alada
________pelada
e
ao penetrar
termina
sem
qualquer orgasmo
uma
ave-bala
nasce
e mata
na
capital e no interior
________de
qualquer corpo
uma
ave-bala
nasce
e mata
capital
e trabalho
uma
ave-bala
não
escolhe tempo nem espaço
pode
ser (a)manhã tarde noite ou hoje
chuva
sol meio-dia orvalho
uma
ave-bala
mais
do que obra divina
faz
parte da extensão
de
um homem-bicho-homem
de
seu ódio
de
sua raiva
de
seu errar
____ao
céu
____ao
léo
de
seu estranho amar
de
seu cavalgar estrelas
de
seu dominar o mar
de
seu atrever-se ao ar
VI
uma
ave-bala ao léu
não
escolhe continente
nem
chapéu
para
reverência própria
só
apronta escarcéu
faz
de qualquer corpo
ausente
ou presente
coisa
subjacente
coisa
que boia à toa pelo rio
uma
ave-bala
____de
rapina, ou não
faz
do corpo quente
objeto
frio
uma
ave-bala solta ao vento
faz
de cada sujeito
esquivo
objeto abjeto
envolto
em cantos, choros
murmúrios
e ladainhas
mesmo
depois de retirada
a
ave-bala não traz de volta
a
vida que voou
reina
ela – a ave-bala –
na
memória de quem ficou
no
olhar estatelado de quem olhou
no
gesto interrompido de quem calou
na
voz engasgada de quem falou
no
ouvido surdo de quem ouviu
o
silvo sibilino
nem
cobra nem felino
nem
o risco no ar
só
um tudo que antepara
um
corpo diante da ave-bala
rapinamente
perdida
de
repente
um
nada
e
ela – a ave-bala achada –
fica
suavemente esquecida
na
mesa de autópsia
para
ser lembrada
na
soturna funerária
VII
uma
ave-bala perdida
depois
de achada
sempre
deixa sequela
e
ninguém se livra
da
memória dela
uma
ave-bala perdida
jamais
cai no esgoto
sai
sempre de um
homem
ira
homem
raiva
homem
tralha
homem
ódio
homem
cinza
homem
escroto
tanto
mais cresce o ódio
mais
a ave-bala perdida
se
transforma em rapina
e
mais ela entra
às
trombetas
ou
em surdina
VIII
a
ave-bala perdida
de
rapina
não
escolhe tempo bom ou ruim
quando
ela se apresenta
pressente-se
alguém
está perto do fim
e é
sempre um presente
que
se perpetua
seja
criança jovem
velho
adulto
basta
ser gente
mulher
e homem
e a
ave-bala de rapina
perdida
não
se faz de rogada
e
se faz anti-semente
IX
mas
as aves-balas perdidas
de
rapina
têm
especial preferência
(juvenil
predileção)
por
meninos avião
esses
que levam
e
polvilham coisas
para
prazeres maiores
chamadas
drogas
de
alucinação
e
deixam as pessoas
dentro
de si de dentro
do
lado de fora
do
dentro do nada
e
essas crianças jovens
encontram
as aves-balas
achadas
em qualquer escuridão
e
caminham com ela nos seus bolsos
quando
deveriam chupá-las
ao
invés de entorná-las
em
qualquer corpo são
e
de repente
essas
aves-balas
de
rapina
se
voltam contra eles
aves-balas
perdidas
de
rapina
bumeranguemente
atrevidas
X
e
no acaso da bala
acha-se
um ocaso
finda-se
uma doce vida
que
poderia ter sido
calma
ou intrépida
e
as aves-balas
de
rapina
perdidas
________ao
léo
cumprem
cada vez
seu
melhor papel
de
povoar de
anjos
arcanjos
querubins
e serafins
o
céu
Fernando Rios
(Jornalista, publicitário, antropólogo, poeta, artista plástico
e consultor em comunicação corporativa integrada, da safra de 1943)
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