José de Sousa Miguel Lopes - Texto para a orelha do livro "Imagens do desaprender"
As gerações
futuras, que venham a ter ao alcance da mão um amplo espectro de textos
culturais significativamente diferentes e melhores, talvez se surpreendam ao
saber que hoje as pessoas de fato, assistam a filmes puramente comerciais. No
futuro, talvez as pessoas fiquem pasmadas ao saberem que hoje se vê tanto filme
ruim. É concebível que a sociedade do futuro olhe para a nossa época como uma
espantosa era do barbarismo cultural, em que as indústrias da cultura, geridas
por interesses comerciais e guiadas pelo mínimo denominador comum, desovam
filmes e outras criações culturais em que a violência aparece como a melhor
maneira de resolver problemas, rebaixam as mulheres e os negros e repetem
incansavelmente velhas fórmulas. As infindáveis ”continuações” dos filmes
populares poderiam chocar uma idade futura, parecendo-lhes primitivos e
bárbaros. As futuras gerações poderão contemplar a incrível concentração de
riqueza, as impressionantes diferenças de classe, a fenomenal ocorrência de
fome e miséria no mundo, as doenças mortais, a violência, a desordem social e a
falta de instituições sociais e humanas e igualitárias, e achar que esta
sociedade é realmente um espanto. Nosso tempo pode algum dia ser visto como uma
idade das trevas, reino de incrível ignorância e atraso, em que a vida é muito
mais feia, brutal e curta do que precisaria ser. Talvez o nosso tempo seja
visto como uma era especialmente retrógrada em que os indivíduos ainda não se
tinham ajustado às novas tecnologias, em que eram esmagados pelos novos meios
de comunicação e ainda não tinham aprendido e governar-se e a controlar a
tecnologia e a mídia. Talvez as futuras gerações riam da pretensão que temos de
ser “esclarecidos e modernos”. Talvez a futura geração entenda melhor os novos
meios de comunicação e as novas tecnologias e os use no sentido de melhorar a
vida. Talvez a crescente seleção dos filmes dê aos indivíduos capacidade de
aumentar seu âmbito de escolha e controle sobre a cultura, portanto de aumentar
sua autonomia e soberania. Talvez, no futuro, haja grupos de estudo de cinema,
como este Cinema para aprender e desaprender, assim como existem grupos
de estudo em livros hoje, e as pessoas possam reunir-se para dissecar de
maneira crítica as produções cinematográficas, e o ensino do cinema passe a
fazer parte dos currículos escolares, do ensino fundamental à universidade e
daí por diante. Talvez as pessoas aprendam a usar o cinema a fim de
comunicar-se, de produzir suas próprias criações, que circularão e serão
distribuídas por toda a sociedade, de tal modo que as vozes antes
marginalizadas se possam fazer ouvir, que um amplo espectro e uma grande
diversidade de culturas encontrem expressão, que as pessoas possam conversar
entre si, ser criativas e participar da produção da sociedade e da cultura.
Talvez, sim, talvez não. Talvez, no futuro, gaste-se mais tempo vendo filmes
cada vez mais estúpidos, e o mínimo denominador comum talvez fique ainda mais
mínimo, numa era de barbarismo cultural impossível de imaginar hoje. Talvez o
presente pareça uma idade de ouro do individualismo, da liberdade e da democracia
para os futuros habitantes das sociedades anti-utópicas, mais ou menos como nos
filmes de ficção cientifica apocalíptica, do tipo pós-holocausto, representam o
nosso final de século XX: utopia em comparação com o melancólico futuro
retratado nesses filmes.
Mas façamos do
presente essa idade de ouro! Sejamos otimistas e esperançosos, como o são os
textos presentes no livro
Imagens do desaprender. Operando na contra-mão do cinema
dominante, estes textos são parte constitutiva de um fascinante projeto “Grupo
de Pesquisa e Extensão Cinema para aprender e desaprender”, que está
dando os primeiros passos, e ao qual auguramos uma contribuição relevante rumo
a um ensino crítico, que possibilite decodificar as mensagens do cinema,
distinguindo seu complexo espectro de efeitos. Seguramente, estes textos
criarão as condições de aprimoramento da capacidade de perceber as várias
expressões e os vários códigos ideológicos presentes nas produções
cinematográficas da(s) cultura(s) de nosso tempo, ao mesmo tempo que procurarão
fazer uma distinção entre as ideologias hegemônicas e as imagens, os discursos
e os textos que as subvertem. Contribuirão, certamente, para que as crianças e
jovens de hoje, bem como os das futuras gerações aprendam a defender o cinema
como uma arte para informar e esclarecer, e não para manipular. Se ao ato de
educar podemos atribuir o significado de empurrar para o exterior, incitando à
viagem pelo desconhecido, mesmo sabendo que isso representa a possível quebra
dos laços que dão conforto, o mesmo se pode aplicar ao ato de educar para o
cinema. Partir, exige um dilaceramento que arranca uma parte do corpo à parte
que permanece ligada à margem de nascimento, à proximidade de parentesco, à
casa e aos costumes próprios do meio, à cultura da língua e à rigidez dos
hábitos. Convido, pois, o leitor, a partir comigo nesta fascinante viagem pelos
textos deste livro, ancorados em filmes que tratam da infância e da juventude.
Que as ideias presentes em cada texto possam dar sua contribuição para fazer de
cada escola um lugar antropológico, com tudo o que isso implique em termos de
afeto, de memória e de identidade. Que ao chegarem às escolas, estas ideias
possam ajudá-las a se transformarem em verdadeiros lugares de hospitalidade, de
reconhecimento, de proximidade e de encontro. Que o cinema, na sua mais genuína
ambição estética e humana possa dar suporte ao sonho deste encontro. Que ele
possa estar em sintonia com a fala do poeta ao afirmar, seguro de sua
humanidade, que onde não houver sonho, não te demores...Assim, leitor, o
convite final que agora lhe faço é que se demore nestes textos.
José
de Sousa Miguel Lopes
Leia uma resenha do livro por Suzana Feldens Schwertner da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) clicando aqui
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