sábado, 20 de setembro de 2025

Política e geopolítica mundial































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Moçambique - Diário de um Estado que odeia o cidadão


Há sensivelmente três semanas escrevi alguns textos sobre o que estava a viver na terra natal, de férias. Chamei-lhes diários. Eram relatos de passaporte, de estradas, de lojas, de bancos, de conservatórias, até de memórias. Cada um era uma paragem. Cada paragem, um retracto do país em que vivo e do país que me habita.
 
O fio condutor era sempre o mesmo. Era a burocracia como destino. Um Estado que organiza bichas, carimbos, vitrinas e radares com zelo religioso, mas que se esquece de organizar a vida das pessoas, de pelo menos a facilitar. Um Estado que se protege dos cidadãos, como se fôssemos todos suspeitos, todos culpados em potência. Um Estado indiferente.
 
Ri-me muitas vezes, que fazer e que saída? O sarcasmo foi um refúgio. Mas a verdade é amarga; cada carimbo inútil rouba tempo, cada posto policial improvisado custa vidas, cada fila interminável ensina-nos que a obediência é mais importante do que a eficiência.
 
E no entanto, o mais grave não é o ritual em si. O mais grave é constatar que o cidadão não tem como chamar o Estado à responsabilidade. O sistema político não responde ao cidadão. Mantém distância. Não escuta. E, como não escuta, não aprende. Como não aprende, não melhora. Na verdade, a ideia é mesmo essa. Não aprender porque isso pressupõe dar importância ao cidadão. E em Moçambique o cidadão não é importante. Nem deve ser.
 
O passaporte é um exemplo perfeito. Pedi urgente. Sete dias, disseram. Passaram quatro semanas. Ainda não tenho passaporte. A desculpa? Não há cadernetas em Maputo, onde se emitem os passaportes. E, no entanto, o preço de urgente mantém-se. Porque foi esse que pedi. Perguntei se, dada a espera, não devia pagar o valor do normal. Em vez de resposta, gargalhadas. Riram-se na minha cara. Não compreendem porque o Estado haveria de corrigir a injustiça.
 
Os bancos são outro caso exemplar. Toda a gente se queixa. Todos os dias. Mas nada muda. Eu próprio vivo no estrangeiro e já testei. Já transferi dinheiro pelo Western Union ou serviços semelhantes, as transferências correm sem problemas. Mas se faço a mesma operação pelo banco, começa o calvário. Preciso escrever uma carta a justificar o propósito. A pessoa que recebe deve preparar outra carta a confirmar o montante. O valor tem que coincidir, vírgula por vírgula. É preciso explicitar o grau de parentesco ou relação, imprimir NUIT, juntar anexos. Uma romaria de papel. E porquê? Já ninguém se lembra da razão dessas regras. Ficaram apenas os escombros da intenção inicial, transformados em tortura para quem usa o sistema.
 
E o que é mais cruel é saber que em muitos países africanos, as transferências da diáspora ultrapassam a ajuda externa. Aqui, o Estado responde à generosidade com achincalhamento. Provoca ataques cardíacos, complica sem necessidade, cria obstáculos onde devia haver pontes. E do outro lado do balcão, há alguém engravatado ou de salto alto feliz da vida por ter complicado a vida de alguém. Há lá, desse outro lado, alguém com uma forte noção de serviço público: mostrar quem é autoridade. Ou quem tem acesso ao carimbo.
 
É isso que dói mais. Dói perceber que estas coisas todas, estes achincalhamentos, não são acidentes, mas método. O sistema não falha por ser frágil. Isso até a gente havia de compreender. Falha porque não aprende. Não pode aprender, porque não responde ao cidadão. E não respondendo, não sente obrigação de mudar. O Estado funciona no nosso país quando as suas regras conseguem mostrar ao cidadão que ele não vale nada. Nada mesmo.
 
Talvez estes diários não sejam apenas memórias pessoais. Talvez sejam documentos de época. Retractos dum país que parece incapaz de tornar a vida mais simples. Que prefere complicar, multiplicar carimbos, desconfiar sempre. Um país, cujo Estado, odeia os cidadãos. Despreza-os. É indiferente ao seu sofrimento.
 
Escrevê-los, os artigos, foi uma forma de resistir. De dizer que eu vejo. Eu lembro. Eu não aceito que a vida do cidadão seja sempre o elo mais fraco da cadeia. Se for assim, o Estado perde toda a sua razão de ser.
 
Se cada diário começou num dia concreto, portanto, numa bicha, numa paragem, numa memória, todos terminam aqui, no mesmo ponto. E esse ponto é a convicção de que não podemos deixar de falar. Porque, no silêncio, a burocracia triunfa. E triunfando cria as condições necessárias para que Moçambique seja igual a si próprio. Essa é a verdadeira moral desta história toda. A desordem tem método. E esse método é o enorme investimento que o Estado faz em complicar a vida do cidadão. 
 
E eu que sou cientista social, sei agora uma coisa. Se alguém me pedisse para dar a fórmula para a destruição dum país, eu havia de dizer: é só ver como o Estado moçambicano odeia os seus cidadãos. Criar regras que outro objectivo não têm senão complicar a vida. E não querer mudar nada, o que se logra não criando nenhuma condição para que o cidadão seja ouvido.
 
Elísio Macamo

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