O problema da lenda consiste em aceitar a narrativa de que o dinheiro
foi pago para fins eleitorais e que o caixa um e o caixa dois
compartilham algum DNA. Essa relação ocorreria pelo contexto: o
dinheiro foi recebido durante a campanha, por exemplo. Logo, alguma
relação com eleição deve haver, certo? Errado. Mera suposição.
Esse erro lógico penetrou na cultura e na imprensa. Na quinta-feira, a
Folha de S.Paulo escreveu
ao explicar a decisão do STF: “Assim, um político que recebeu propina
desviada de obras públicas e usou parte do dinheiro na campanha será
processado na Justiça Eleitoral.”
Como saber se parte do dinheiro foi usado na campanha se ele será gasto
sem recibo ou transferência bancária?
Caixa dois não existe. Existe político recebendo dinheiro ilegal, e o
nome disso é corrupção. Se o dinheiro foi descoberto antes de ser
gasto, nunca saberemos se o candidato tinha planos de usá-lo para pagar
contas de campanha. Não há como provar com fatos concretos que esse
dinheiro ilegal tem relação com eleição. Só por meio de crença.
Uma investigação, em teoria, até pode descobrir a existência de
dinheiro não declarado de fato gasto em campanha. Uma difícil tarefa,
uma vez que políticos raramente pedirão recibos de serviços pagos com
doação ilegal – uma tese provavelmente construída apenas na base de
testemunhos. E aqui surge o segundo erro lógico do mito do caixa dois:
de que não há, necessariamente, má intenção no pagamento oculto. Há
sim: é um dinheiro recebido de forma ilegal e que fere o princípio de
transparência da vida pública. E usado em benefício próprio para
subverter uma das mais sagradas instituições democráticas – o
voto.
Em ambos os casos, há algo mais grave do que um deslize eleitoral. A
crença no folclórico caixa dois é tão forte no Brasil que até o
coordenador da força-tarefa da Lava Jato, procurador Deltan Dallagnol,
que criticou a decisão do STF e, como bom justiceiro, teria todos os
motivos para apoiar uma abordagem ainda mais dura, escorrega na
tentação de abraçar o boitatá. “Corrupção diz respeito à origem do
dinheiro ou razão do pagamento. Caixa dois eleitoral diz respeito ao
destino ou como o dinheiro é usado. São duas condutas distintas, mas na
prática política muito relacionadas”, escreveu
no Twitter, em
fevereiro.
E os incontáveis casos onde esse dinheiro será gasto sem deixar
rastros, procurador? Como delimitar exatamente quantos reais dos
milhões
encontrados na casa de Geddel Vieira Lima, por exemplo, foram gastos em
campanha e quantos foram usados para pagar garrafas de vinho em
jantares em Brasília? É exercício tecnocrático ingênuo: toda a pilha de
dinheiro é imoral e está contaminada desde a origem.
No julgamento do STF, o ministro Luís Roberto Barroso, um dos cinco que
votaram contra a fantasia do caixa dois, teve um momento de lucidez e
criticou o folclore nacional. “Faz pouca diferença distinguir se o
dinheiro vai para o bolso ou para a campanha. O problema não é para
onde o dinheiro vai, é de onde o dinheiro vem. E o dinheiro vem da
cultura de achaque e corrupção.”
Caixa dois é apenas um eufemismo para a boa e velha propina. Precisamos
encerrar esse conto de fadas. É um dinheiro não contabilizado de propósito
para comprar favores políticos e esconder da sociedade quem está
financiando a política. Mais tarde, quando projetos forem aprovados e
empresas forem beneficiadas, a doação oculta impede o eleitor de
entender quem está recebendo o investimento financeiro de volta, com
juros.
No mundo político, a fantasia do caixa dois favorece os corruptos
porque permite à defesa construir a falsa narrativa de que o dinheiro
sofre de um mero problema de identidade. Ele deveria ser registrado e,
por essas coisas da vida, não foi – a manobra
Onix.
Quando um padeiro faz o seu caixa dois, a Receita parte do pressuposto
que ele deixou de pagar impostos de propósito, com má intenção. E
responde pelo crime de sonegação fiscal previsto na
lei 4729 – ainda
que ele estivesse passando por problemas financeiros e não tivesse
dinheiro para quitar os impostos. Mas políticos foram bem sucedidos em
popularizar no Brasil a noção de que essa lógica não se aplica à
classe.
Corruptos desejam afastar de juízes e da opinião pública uma imagem
muito mais criminosa e concreta: o dinheiro não declarado tenta
esconder o pagamento de um voto, lobby ou projeto de lei, futuro ou
passado, e será usado para pagar iates e mansões ou, pior ainda, para
comprar votos de parlamentares, como muito ocorreu no Brasil.
Os procuradores da Lava Jato, que sofreram uma
derrota na
votação do STF, têm feito lobby para criar uma nova lei criminalizando
o caixa dois. É um caminho menos pior do que a decisão do Supremo
porque tira o poder da Justiça Eleitoral sobre esses casos. Mas ainda é
uma saída ruim porque continua reconhecendo a existência do saci.
A verdadeira solução não está na decisão do STF e nem na lei proposta
pela Lava Jato. Procuradores e ministros estão participando de uma
ginástica oratória típica do mundo jurídico que não interessa à
sociedade. Um enorme blablablá retórico criado para evitar a saída
simples: enterrar o mito do caixa dois e aceitar que qualquer dinheiro
entregue em segredo para políticos configura corrupção. E o artigo 317
do Código Penal, que define corrupção passiva, já contempla esse
cenário: “Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou
indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em
razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal
vantagem”.
O político que não quiser correr o risco de responder pelo artigo 317
tem um jeito fácil de resolver esse embaraço: declarar todas as
doações. Ou não aceitar propina.
Problema resolvido, sem fadas e gnomos.
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