Vladimir Safatle : "O tempo das execuções"
O tempo das execuções
Vladimir Safatle
Quem matou
Marielle Franco sabe que tem carta branca do poder para usar a violência sem
temer as consequências.
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16/03/2018
Nesta
quarta-feira (14), o Brasil se deparou com o assassinato
da vereadora carioca Marielle Franco (PSOL).
Militante dos direitos humanos, ativista
negra e relatora da comissão da Câmara de Vereadores responsável pelo
acompanhamento dos desmandos da intervenção militar, Marielle denunciara dias atrás execuções do 41º
Batalhão da Polícia Militar do Rio de Janeiro, em Acari.
Aterrorizando a população civil, o
batalhão que mais mata no Rio teria executado dois jovens e jogado os corpos em uma vala. Dias depois, a
vereadora foi perseguida por um carro que disparou nove tiros em seu veículo,
sem roubar nada. Morreram ela e seu motorista.
Não é difícil imaginar o que deve
acontecer depois desse crime: nada, absolutamente nada. Pois ele não é uma
exceção. Ele é o modo normal de funcionamento do governo brasileiro.
Há anos, Paulo Malhães, torturador da ditadura
militar que começara a falar abertamente à Comissão Nacional de Verdade sobre
práticas de assassinato e tortura impetrada por militares, apareceu morto em
seu sítio. Nada aconteceu. Seria possível encher toda essa página de casos
semelhantes.
Quem cometeu tal crime sabe que pode
contar com a segurança e a impunidade de quem faz parte de um Estado dentro do
Estado, de quem tem carta branca para
usar a violência sem temer suas consequências.
Quem cometeu tal crime não quis apenas
assassinar uma vereadora combativa. Quis também atemorizar qualquer um que
queira ocupar seu lugar, agir da mesma forma, impondo com isso um sentimento
generalizado de impotência e de paralisia diante da violência de Estado.
Por isso, esse assassinato é o modo
normal de funcionamento do sistema brasileiro. É assim que se governa no
Brasil: usando impunemente a violência policial, assassinando políticos quando
necessário, atirando contra manifestantes, executando cidadãs e cidadãos pobres
e vulneráveis.
Marielle expôs como a polícia brasileira age da
mesma forma que a máfia italiana, mas com a inteligência suficiente para
concentrar sua atuação de milícia mafiosa em favelas "invisíveis" aos
olhos de muitos.
As mesmas favelas que alguns colunistas
deste jornal foram capazes de comparar a países estrangeiros controlados por
outras forças e, por isso, meritórios de intervenção militar digna de situações
de guerra.
Ou seja, intervenção que trate setores da
população como habitantes de um país inimigo, pessoas a serem fichadas,
submetidas a humilhações cotidianas e temor constante de simplesmente
desaparecerem sem traço.
Não por acaso, antes de ser assassinada, Marielle vinha de um evento chamado Jovens
Negras Movendo as Estruturas. No Brasil, a cada 21 minutos, um jovem
afrodescendente é morto, o que mostra claramente como se trata de um setor
"matável" da população.
Morte, normalmente, sem consequência
legal e cuja comoção social provocada pela violência será provavelmente menor.
O que expõe claramente o circuito de violência que impera na sociedade
brasileira.
O que vemos agora é apenas a consolidação
de uma estrutura de fato. Um país comandado por uma casta de indiciados e
criminosos que se apoia em poder militar anabolizado e em poder policial descontrolado que
há muito se degradou à condição de setor organizado do banditismo nacional.
Algo que desde a época do regime militar
com seus esquadrões da morte e da extorsão, com seus delegados Fleury faz parte
da paisagem local.
Por isso, há de se insistir: esse não é
um crime isolado, nem será o último. Ele é a verdadeira expressão do que
significa "governar" no Brasil. Pois esse país é, antes de qualquer
coisa, uma forma de violência.
Vladimir Safatle - Filósofo, é professor livre-docente do Departamento
de Filosofia da USP (Universidade de São Paulo).
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