Relatório sobre universidades do país parece dizer que há elefantes no céu
Relatório sobre universidades do país parece dizer que há elefantes no
céu
Lira Neto
Folha de S. Paulo, 10/12/2017
"Se você diz que há elefantes voando no céu,
as pessoas não vão acreditar", observava Gabriel García Márquez. "Mas
se você disser que há 425 elefantes alados, as pessoas provavelmente
acreditarão."
Expoente do chamado realismo mágico, o escritor
aludia ao recurso literário de construir narrativas com alto nível de
detalhamento, a ponto de fazer os leitores "acreditarem" nelas.
Instaurar um pacto no qual a irrealidade, apesar de manifesta, é aceita em nome
da fruição e, quase sempre, da alegoria.
Para além do campo literário, amparar supostas
verdades com base em números e estatísticas, manobrando dados e fontes de
informação, é truque de ilusionismo político. Em vez de artifício estético,
trata-se de manipulação da fé alheia.
O relatório apresentado há poucos dias pelo Banco
Mundial ao governo brasileiro, no capítulo destinado a traçar o diagnóstico de
nossas universidades, tenta fazer a opinião pública acreditar que há
paquidermes planando no céu. É o caso de lembrarmos que elefantes, obviamente,
não voam.
"Um estudante em universidade pública custa de
duas a três vezes mais que um estudante em universidade privada", sustenta
o relatório, sacando números da cartola: o custo médio anual por estudante em
universidades privadas seria de até R$ 14,8 mil; em federais, 40,9 mil.
A comparação é escalafobética. Nas universidades
públicas, ao contrário do que ocorre na maioria das instituições privadas, a
vida acadêmica não se resume à sala de aula. Abrange o indissolúvel trinômio
ensino, pesquisa e extensão, por meio de ações sistemáticas junto à comunidade.
Daí a necessidade de investimentos sólidos em hospitais, clínicas, museus,
teatros e laboratórios, entre outros equipamentos.
Além disso, professores de instituições públicas
possuem maior qualificação e, assim, salário minimamente compatível com a
relevância social do ofício. Como observa o físico Peter Schulz, em artigo no
"Jornal da Unicamp", 39% dos docentes da rede pública têm formação de
doutorado, contra 22,5% da privada. Como dado extra, 85% dos professores das
universidades públicas trabalham em regime de tempo integral. Nas privadas,
22,5%.
O salário dos docentes, aliás, está na mira.
"Os professores universitários brasileiros ganham muito acima dos padrões
internacionais", alardeia o relatório, com astúcias de prestidigitador.
Dito assim, nossos mestres e doutores parecem nababos de diploma.
Contudo, um gráfico contido no próprio documento
desmente a pegadinha: mesmo o salário dos professores que atingem o topo da
carreira, no Brasil, situa-se em nível bem inferior ao dos colegas
estadunidenses, italianos, australianos e franceses, por exemplo.
O maior ardil do relatório procura alimentar uma
lenda urbana que cerca a academia: "Embora os estudantes de universidades
federais não paguem por sua educação, mais de 65% deles pertencem aos 40% mais
ricos da população".
A informação não procede. Pesquisas do Fonaprace
(Fórum Nacional de Pró-Reitores de Assuntos Comunitários e Estudantis) e da
Andifes (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino
Superior) apontam o contrário. Apenas 10,6% dos alunos das universidades
públicas vêm de famílias com renda superior a dez salários mínimos. Com a
democratização introduzida pelo sistema de cotas, o índice de estudantes
oriundos de famílias com renda abaixo de três salários, atualmente em 51,4%, só
tende a crescer.
Amparado no relatório, o Banco Mundial propôs ao
governo dois caminhos: "limitar os gastos por aluno" e
"introduzir tarifas escolares". Em bom português, sucatear a
universidade e cobrar mensalidades.
Os que não puderem pagar pelos estudos, tratem de
recorrer a empréstimos. Nos Estados Unidos, onde o modelo impera, milhões de
jovens recém-formados acumulam dívidas impossíveis de serem pagas.
É sintomático: ao longo das 17 páginas do documento
relativas ao tema, em nenhum momento os repasses para o setor educacional são
definidos como "investimento". Em contrapartida, a palavra
"gasto" aparece nada menos de 77 vezes.
Impossível dissociar a leitura do relatório e a
escalada autoritária que busca criminalizar a arte e a cultura, bem como
espezinhar qualquer manifestação do pensamento complexo e do espírito crítico.
Virtudes que encontram na universidade pública um de seus últimos territórios
de excelência.
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