domingo, 17 de dezembro de 2017

Rui Knopfli. Há uma cadeira vazia à mesa do poeta


Duas décadas depois do desaparecimento de Knopfli, uma pequeníssima editora de Coimbra traz de volta do exílio e da morte um poeta desta língua que Moçambique não quis e Portugal não soube merecer. 
Para ler o texto completo de Diogo Vaz Pinto clique aqui 


Leia abaixo 4 poemas de Rui Knopfli


BALDIO

O menino que eu fui debruça-se furtivo
de meus olhos sobre o recanto da paisagem.
Entre a dureza austera dos prédios
e o largo sorriso colorido das vidraças
aquele recanto que sobrou da paisagem
pertence intacto ao menino que eu fui outrora
e o menino que eu fui outrora desce
alvoraçado de meus olhos, desliza
entre o capim, atira pedras aos galagalas
e salta sobre as velhas folhas de zinco
apodrecido, num cenário querido de girassóis
antigos. Então parto dali
e o menino que fui regressa extenuado
e adormece na sombra de meus olhos.

FESTA

Quando romper a manhã…

Não,
nada de estandartes desfraldados,
bandeiras a baloiçar-se ao vento.
Nem gritos, nem manifestações,
nem meetings no bulício da praça.
Tão-pouco a embriaguez desvairada,
a louca conquista da rua.

Quando romper a manhã,
saibamos erguer a fronte
ao sol puro.
Em silêncio olhar de frente,
na curva do horizonte,
o novo sol-nascente.
Saibamos recolher-nos
e, por um longo momento,
pesar,
respirar,
captar as múltiplas vivências
da tranquila alegria
que irá brotar ininterrupta,

quando romper a manhã.

TESTAMENTO

Se por acaso morrer durante o sono
não quero que te preocupes inutilmente.
Será apenas uma noite sucedendo-se
a outra noite interminavelmente.

Se a doença me tolher na cama
e a morte aí me for buscar,
beija Amor, com a força de quem ama,
estes olhos cansados, no último instante.

Se, pela triste monotonia do entardecer,
me encontrarem estendido e morto,
quero que me venhas ver
e tocar o frio e sangue do corpo.

Se, pelo contrário, morrer na guerra
e ficar perdido no gelo de qualquer Coreia,
quero que saibas, Amor, quero que saibas,
pelo cérebro rebentado, pela seca veia,

pela pólvora e pelas balas entranhadas
na dura carne gelada,
que morri sim, que me não repito,
mas que ecoo inteiro na força do meu grito.

CAIR DO PANO

As acácias já se incendiaram de vermelho
e o zumbido das cigarras enxameia obsidiante
a manhã de Dezembro. A terra exala,
em haustos longos, o aguaceiro da madrugada.
Ao longe, no extremo distante da caixa

de areia, o monhé das cobras enrola
a esteira e leva o cesto à cabeça,
cumprido o papel exato que lhe coube
e executou com paciente sageza hindu.
Dura um instante no trémulo contraluz

do lume a que se acolhe, antes da sombra
derradeira. Assim, os comparsas convocados
para esta comédia a abandonam, verso a verso,
consignando-a ao olvido
e à erva daninha que, persistente, a cobrirá

irremediavelmente. O encenador faz
a vénia da praxe e, porque aplausos
lhe não são devidos, esgueira-se pelo
anonimato da esquerda alta. É Dezembro
a encurtar o tempo, o pouco que nos sobra.

Rui Knopfli

0 comentários:

  © Blogger template 'Solitude' by Ourblogtemplates.com 2008

Back to TOP