Alex Castro: Como entrar na obra de um autor
Como entrar na obra de um autor
Alex Castro
Variação de comentário que escuto com frequência:
"Não sei o que o povo vê na
Clarice/Guimarães Rosa/Machado/etc. Eu li e achei super chato!"
E respondo:
"Poxa, que incrível. São alguns dos maiores
autores de todos os tempos. O que você leu dele?"
"Perto do Coração Selvagem/Tutaméia/Helena/etc."
"Ah, tá explicado."
Existem obras e obras.
* * *
Pra começar, com raras e honrosas exceções, uma
pessoa autora é maior que uma única obra.
Então, se você só leu UMA obra de uma pessoa
autora, então, você conhece UMA obra daquela pessoa autora. Para podermos fazer
afirmações abalizadas sobre "Machado é assim", "Clarice é
assado", é preciso ler pelo menos algumas obras, de diferentes fases,
etc.
(Senão, é como aquela pessoa que vai a Paris, não sai da
Champs-Elysees, e volta dizendo que "amou a França!". Amiga, você não
conheceu nem Paris, quem dirá a França.)
Como regra pessoal minha, quando incluo um nome
na minha lista de pessoas autoras favoritas, são sempre pessoas das quais li
vários livros -- senão eu não teria como saber se gosto realmente dela como
autora ou se só gostei daquela obra.
Laclos e Lampedusa publicaram somente um romance
cada um ("As relações perigosas" e "O leopardo"), obras
brilhantes que resumem e representam toda uma época, mas eu não teria como
dizer que são grandes autores, ou que são meus autores preferidos, porque a
amostra é muito pequena.
(Outras grandes obras filhas-únicas: "O morro dos ventos
uivantes", "A princesa de cleves".)
* * *
Vamos usar nossas três maiores pessoas autoras
brasileiras como exemplo.
Quando nós, enquanto cultura, em conversa de bar
e resenha de jornal, falamos de Guimarães Rosa, estamos falando
fundamentalmente do Guimarães Rosa de "Grande Sertão Veredas".
Por ser um livro intimidador, uma pessoa talvez
prefira começar a ler a obra do Rosa por "Tutaméia", livro de contos
curtíssimos de cerca de três páginas.
O problema é:
1) "Tutaméia" é geralmente considerado
um Rosa menor (eu acho chatérrimo; tem todas as dificuldades de "Grande
Sertão Veredas" e nenhuma das facilidades);
2) Você vai estar entrando em uma conversa de
surdos com sua própria cultura, pois, enquanto nós continuaremos falando do
Rosa de "Grande Sertão Veredas" , você estará falando do Rosa de
"Tutaméia".
Não é que você não possa gostar mais das obras
ditas menores de uma autora.
(Nas obras de Dostoievski e Turgeniev, por
exemplo, me agradam muito mais livros ditos menores, como "O
jogador", "Uma história lamentável", "Memórias do
subsolo", no caso do primeiro, e "Primeiro amor", "Asia",
"Cadernos de um caçador", "Torrentes de primavera", no caso
do segundo, do que as obras-primas mais badaladas "Irmãos
Karamazovi", "Crime e Castigo" e "Pais e Filhos".)
Mas, por uma questão de método, para você não
correr o risco de sentir antipatia por um grande autora só porque começou por
uma obra notadamente inferior, recomendo pesquisar qual de suas obras é considerada
sua obra-prima e começar por ela.
Na obra de Guimarães Rosa, por exemplo,
"Grande Sertão Veredas" é único. As obras anteriores
"Sagarana" e "Corpo de Baile" me parecem boas, mas
basicamente boas enquanto treino e foreshadowing pra "Grande Sertão
Veredas", e suas obras anteriores, "Estas estórias" e
"Tutaméia" sinceramente me parecem anticlimáticas.
Vamos falar de Clarice. "A hora da
estrela" e "Água viva" estão entre as coisas mais sublimes
jamais escritas em português, com "A paixão segundo G.H." só um
pouquinho abaixo. Quando nós, enquanto cultura, falamos de Clarice, estamos
falando desses livros -- e também, em alguma medida, da Clarice dos contos de
"Felicidade Clandestina" e "Laços de Família".
Mas a verdade é que Clarice experimentou muito,
e nem sempre deu certo. (Essa é uma marca das grandes autoras experimentais.)
Apesar de amar "A hora da estrela", "Água viva" e "A
paixão segundo G.H.", entendo que não são livros para qualquer pessoa. Não
existe nada, nada de convencional neles. (O primeiro é o mais normalzinho, mas
não muito; o segundo é uma carta de término escrita por uma pintora, sem
qualquer tipo de enredo e em uma linguagem única e quase indecifrável; no
terceiro, de duzentas e tantas páginas, todo o enredo é uma mulher entrando no
quarto da empregada, vendo uma barata morta no chão e -- spoiler alert --
comendo a barata.)
O problema é que, em minha sincera opinião, o
resto da obra de Clarice, justamente por constar de experiências que nem sempre
deram certo, é bastante inferior. Se você leu os primeiros romances de Clarice,
"Perto do coração selvagem", "A maçã" e "A cidade
sitiada", escritos quando ela ainda era muito jovem e estava encontrando
sua voz, talvez até você tenha gostado (eu odiei, meu Deus) mas, de qualquer
modo, inferiores ou não, quando falamos de Clarice, não é sobre a autora desses
três romances que estamos falando.
Então, no caso de Clarice, se a pessoa leitora
for aventureira, recomendaria começar pela "Hora da Estrela"; se não
for, pelos contos de "Felicidade Clandestina" e "Laços de
Família", que, apesar de brilhantes, são a coisa mais convencional que
Clarice escreveu.
r fim, Machado.
Eu, como escritor e leitor voraz, já li a obra
(quase) completa de muitas autoras. E posso atestar que em pouquíssimos casos
vale a pena. Quase sempre, existem alguns livros brilhantes, mas o grosso são
sempre trabalhos menores, da juventude ou da senilidade, que ou preparam o
terreno para a grande obra ou a repetem sem o mesmo brilho.
(Kafka e Tchecov são minhas duas pessoas autoras
favoritas. Como ambos morreram jovens, não deixaram obras da senilidade, mas
seus primeiros trabalhos são fracos, fracos, e não chegam aos pés da sua obra
posterior.)
Machado, para mim, é a exceção.
(Aviso que talvez seja bairrismo. Machado é o
escritor mais carioca de todos os tempos, um homem que saiu da cidade somente
uma vez na vida, e só para ir até ali a serra e voltar. Eu não sei se consigo
separar meu amor pelo Rio com meu amor por Machado, mas vá lá.)
No caso do Machado, a divisão entre "obras
boas" e "obras ruins" é a mais famosa. Mesmo quem nunca ouviu
falar das distinções que fiz na obra de Rosa e Clarice provavelmente "sabe"
que "Dom Casmurro" e "Memórias póstumas de Brás Cubas" são
os romances realistas, bons, fodões do Machado, e que os seus primeiros
romances, "Helena", "Iaiá Garcia", etc., são românticos,
bobos, inferiores.
Eu discordo violentamente, mas o conselho se
mantém. Quando nossa cultura fala de Machado, está falando do Machado de
"Dom Casmurro" e "Memórias póstumas de Brás Cubas". Então,
se você nunca leu Machado, melhor começar por esses.
Ok, concordo que esses dois são os melhores e
que, só eles, já bastariam para colocar o Brasil no mapa da literatura mundial,
mas eu mantenho que TODA a obra do Machado é brilhante. Romances geniais como
"A mão e a luva", por exemplo, só parecem inferiores se comparados a
"Dom Casmurro" e "Memórias póstumas de Brás Cubas". Se
Machado tivesse morrido na véspera de escrever "Memórias póstumas de Brás
Cubas", ainda assim seria nosso maior escritor.
* * *
Enfim, esse é o conselho:
O melhor modo de entrar na obra de uma pessoa
autora é por sua obra-prima.
Depois, se gostar, você vai explorando as obras
ditas menores. Talvez uma ou outra até te agrade mais que a obra-prima, mas, na
grande maioria dos casos, você provavelmente concordará com a opinião corrente
das eras.
* * *
Ainda Machado
Quando Machado acerta, é uma inspiração: um
brasileiro, mulato nascido no morro, consegue escrever tão bem quanto qualquer
ser humano jamais escreveu!
Quando erra, é uma inspiração: se até mesmo ele
pôde cometer esse conto, então, há esperanças de que nossos erros também serão
relevados, esquecidos, enterrados!
* * *
Não recomendo que ninguém compre as obras
completas de nenhuma pessoa escritora. Obras completas são cheias de lixo.
Qualquer autora que passou toda uma vida escrevendo e publicando produziu uma
quantidade gigantesca de lixo.
(Exceção de compradoras: bibliotecas, pesquisadoras,
escritoras como eu. Exceção de escritoras: aquelas que produziram muito, muito
pouco, tipo Raduan Nassar, etc.)
Só faz sentido comprar uma obra completa de
Machado de Assis, por exemplo, se você já leu todos os livros dele
"autorizados" três vezes cada um e ainda está com sede de mais.
Machado passou a vida publicando loucamente na
imprensa carioca. Tem revistas com mais de um conto dele, ambos assinados com
pseudônimo diferentes. Foi nesse frenesi de escrever, vender, publicar que se
forjou o talento de nosso maior escritor. Certamente, sem essa pressão prática,
ele não teria evoluído tanto.
Por outro lado, isso também quer dizer que
grande parte do que ele produziu era lixo. E ele sabia disso. O homem
selecionou somente uma parte ínfima de sua produção para ser publicada em
livro. O resto, coitado, ele contava que permanecesse esquecido nas revistas.
Na verdade, ler os contos que Machado escolheu
não publicar em livro é perceber como ele foi sábio nessa escolha.
Eu escolher ler os contos ruins de Machado
porque:
1) mesmo os piores, alimentam meu amor pelo Rio
do século XIX e me ensinam coisas deliciosas sobre os hábitos e costumes, ruas
e paisagens da minha cidade amada;
2) me aliviam a alma em relação aos meus
próprios contos ruins.
(Morro do Livramento, onde nasceu Machado.)
* * *
Reiterando o conselho: se puderem, não comprem
nem leiam obras completas. Procurem pelas melhores obras de cada pessoa autora
e, depois, troquem de pessoa autora.
FONTE: Aqui
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