Renan Calheiros fica no Senado por decisão da junta financeira governante
Renan Calheiros fica no Senado por decisão da junta
financeira governante
Vladimir Safatle
09/12/2016
Se alguém ainda tinha ilusões a respeito de o Brasil continuar
como uma república, esta semana serviu para dirimir as últimas dúvidas. Ela
termina com a reedição da antiga teoria medieval dos dois corpos do rei.
Um dos maiores historiadores do século 20, Ernst Kantorowicz ficou
célebre por seus estudos sobre a especificidade da incorporação do poder na
Idade Média.
Suas formulações apontavam, presente tanto no direito quanto nas
representações políticas, para um duplo corpo do rei: o rei tem, ao mesmo
tempo, um corpo mortal, corruptível, e outro imortal, incorruptível, sublime,
que desconhece tempo.
Em algumas situações, lembrava Kantorowitz, chegou-se até a usar o
corpo sublime contra o corpo perecível, julgando o rei em nome do rei.
O que não sabíamos é que Renan Calheiros também tem dois corpos.
Um é réu em processo penal, por isso é corpo de suspeito de crime grave, o que
o coloca como incapaz de assumir a função máxima de presidente da República. O
outro é um corpo sublime, que não traz as máculas e as suspeitas do primeiro
corpo e que, por isso, pode ocupar a presidência do Senado.
Enquanto não for chamado à função de substituto do
"presidente", Renan se apresenta à República com seu magnânimo corpo
sublime. Quando ele aparecer na linha de substituto, Renan voltará a existir em
seu vil corpo réu. O bom e probo Eduardo Cunha não foi contemplado com tamanha
escolástica. Uma pena.
Que uma aberração desta natureza possa ter sido gestada à luz do
dia não devia, no entanto, surpreender ninguém. Quem decidiu a permanência de
Renan Calheiros na presidência do senado não foi o STF, mas a junta financeira
que nos governa.
Renan é necessário para garantir a tramitação da PEC que congela
os gastos públicos por 20 anos, enquanto libera do congelamento os bilhões
pagos pelo governo federal com serviço e juros da dívida pública que fazem do
sistema financeiro brasileiro um dos mais rentáveis do mundo.
Essa PEC, que retira do Congresso a possibilidade de realmente
discutir o Orçamento, transformando-o assim em uma associação recreativa quer
irá nos animar com cenas de xingamento, soco e outros pastelões, faz do Estado
brasileiro um mero ente que visa capitalizar o dinheiro de rentistas privados.
Um Estado privado, não uma república.
Aqueles que vendem a ilusão de que tamanho desmonte do serviço
público brasileiro será o caminho triunfal para a saída da crise podem se mirar
nos exemplos de todos os outros países que aplicaram "políticas de
austeridade" (menos brutais que esta, diga-se de passagem).
Todos eles enfrentam processos de pauperização e precarização que
serviram de campo livre para a extrema-direita. Mas por que você confiaria em
"analistas" que são normalmente pagos de forma régia por aqueles mais
interessados no assalto?
Retirar Renan da presidência poderia significar paralisar todo o
botim resultante do saque do Estado brasileiro, por isso, ele fica.
O senhor Calheiros entrou na linha de tiro por querer limitar o
poder do Judiciário, que acredita governar o Brasil na ausência de qualquer
legitimidade substancial dos outros dois poderes.
Mas, bem, os juízes também precisam se submeter à junta
financeira. Eles aprenderam isso nesta semana. No entanto, eles podem ficar
tranquilos pois serão recompensados, já que o governo, enquanto se propõe a
destruir o que sobrava da previdência deste país, já ofereceu aumentos e outras
regalias para nosso bravo Judiciário. E, claro, ele também não esqueceu de não
incluir as valorosas Forças Armadas na reforma previdenciária. Nada estranho,
já que todos eles sempre viveram em outro país.
Enquanto isto, os brasileiros que lutam para não serem espoliados
de seus últimos direitos levam tiros de policiais que invadem igrejas para
combater o velho inimigo interno de sempre: o próprio povo brasileiro. Enquanto
eles lutam na linha de frente, a claque do domingo finge lutar contra a
corrupção, esquecendo de gritar o nome do único "presidente" das
últimas décadas a ser pego em flagrante de tráfico de influência. Deve ter sido
um lapso.
FONTE: Aqui
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