'Se a internet é uma droga, é melhor que antidepressivo', diz psicanalista Elisabeth Roudinesco
FERNANDO
EICHENBERG
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA,
DE PARIS
30/04/2016
A grande virada dos tempos
contemporâneos é marcada por uma forte crise da democracia e do individualismo.
As turbulências globalizadas ameaçam a Europa com desvios totalitários em meio
ao descrédito na política tradicional e ao sentimento de perda de representação
social. Há um crescente anseio por mudanças, mas de rumo incerto. Este é o
diagnóstico resumido da psicanalista e historiadora Elisabeth Roudinesco ao
analisar o homem deste conturbado início de século.
A francesa é a convidada de setembro
do Fronteiras do Pensamento 2016 e aproveitará para lançar no país a edição
brasileira de sua biografia de Sigmund Freud (ed. Zahar), minucioso estudo de
cerca de 600 páginas no qual define o pai da psicanálise como "conservador
rebelde" e criador de uma "revolução simbólica" em perpétuo
movimento.
Leia abaixo trechos da entrevista,
feita no apartamento da psicanalista, em Paris.
Folha - Para a senhora, não se pode
falar em evolução da psicanálise, mas de "rearranjos" em função das
mudanças na sociedade.
Elisabeth Roudinesco - A
psicanálise não é uma disciplina científica, no sentido das ciências da
natureza. Também não é uma ciência suscetível de progressos como a medicina.
Hoje não se cura doença como se fazia na época de Hipócrates. No domínio do
psiquismo, não há progresso da ciência. É a razão pela qual se pode sempre
voltar aos textos fundadores. Por outro lado, surgiram psicotrópicos e
remédios, que não são um progresso em si, pois nunca curaram loucura nem
neuroses. Os loucos passaram do asilo à vida na cidade. Não temos curas, mas
rearranjos.
Qual é o futuro do tratamento
psiquiátrico químico?
Com a química, acreditou-se que havia progresso, que doenças psíquicas seriam
erradicadas. Mas elas são apenas tratadas de modo diferente. É melhor ter
remédios do que hospícios? Sim, mas é um progresso social, não científico. Após
40 anos, a ilusão da química está sendo contestada pelos próprios pacientes.
A sra. critica um certo
emburrecimento dos psicanalistas.
Não foi por acaso que abandonei a prática clínica e me tornei historiadora.
Hoje, a cultura psicanalítica, o estudo dos textos, não são mais os
psicanalistas que fazem. Eles desertaram para publicar casos clínicos. Os
estudos quem faz são filósofos, literatos, historiadores. Este fenômeno é mais
evidente nos EUA e na Europa, e menos no Brasil.
Por que menos no Brasil?
Os psicanalistas brasileiros são ecléticos, menos dogmáticos. A ausência no
Brasil de um grande pensamento ordenado resultou em algo mais positivo. Há 30
anos, os psicanalistas franceses viajavam ao Brasil como colonizadores. E
sofreram um terrível golpe, porque hoje os brasileiros são melhores que eles.
Qual é, na sua opinião, a grande
virada dos novos tempos?
É a crise atual da democracia. O fim do comunismo, em 1989, deu esperança ao
liberalismo, que se tornou o sistema dominante, com a ideia de que o indivíduo
se basta a si mesmo. Isso acabou em 2008, na crise financeira. Percebeu-se que
as desigualdades cresciam e que a economia financeira criava condições para sua
própria destruição. Veio a era das dúvidas. E uma renovação religiosa terrível
no mundo, contestação obscurantista do liberalismo. Como vamos sair disso? Não
sei.
Como a sra. percebe a velocidade das
mudanças hoje?
Sou muito favorável à internet. Todas as novas tecnologias nos acrescentam
muito. Mas é preciso educação e inteligência para fazer a triagem diante da
tela. A ideia de curas no meio do mato sem internet e televisão é algo
ridículo. Não se deve responsabilizar máquinas por nossas escolhas. E a ideia
de que minha tela é uma droga é formidável. Se é uma droga, é melhor que álcool
e remédios. Hoje, em hospitais psiquiátricos e asilos para idosos, se proíbe
internet. É um horror. Tiram a única droga importante, melhor que os
antidepressivos. São os excessos delirantes de nossa sociedade.
Que outros excessos a sra. vê?
No combate ao sofrimento animal, com o que concordo, o veganismo é delirante.
Não consumir produtos de origem animal? É um fanatismo perigoso. A lógica é
ainda mais débil porque somos animais, então um bebê não poderia ser
amamentado, pois o leite vem de um animal. Uma ejaculação é o mesmo. Também não
podemos matar animais perigosos, ratos, escorpiões. É um novo fanatismo.
Mudar de hábitos é mais difícil
hoje?
Não é mais difícil. A questão é que, ao se viver uma mudança, não se sabe onde
ela pode dar. Maio de 68 não foi uma revolução, mas uma adaptação social diante
de instituições arcaicas. No fundo, isso se repete. Por trás de Maio de 68
havia a contestação da Guerra do Vietnã, a descolonização e a ideia de que
devíamos parar de agir como polícia no mundo inteiro. Hoje, temos o retorno do
religioso, a globalização. Mas não creio que seja revolução. E se houver uma,
será um golpe de Estado fascista, isso que é terrível. Não tínhamos fascismo em
68. Hoje, há demanda por mudança, mas uma extrema direita com 30% de intenções
de voto.
E em relação à mudança de hábitos,
pessoais?
As gerações de hoje querem famílias, um pouco de ordem. Os homossexuais
entraram na ordem. Imbecis hostis ao casamento gay não entendem que se trata de
uma demanda liberal. Não tem a ver com revolução de esquerda. É uma adaptação
de velhas instituições a novos costumes, como Maio de 68.
E o indivíduo no meio disso?
Se o indivíduo não tem ideal coletivo, não é nada. Liberdade individual não
basta.
O chamado "Freud bashing",
onda de ataques à vida e à obra de Freud, acabou?
Sim, mas vamos ter um novo "Freud bashing", mais suave. Será uma
tentativa de eliminar a aventura intelectual, de afogá-la no cientificismo. O
"Freud bashing" surgiu em parte porque se fez da psicanálise um
imperialismo do sentido. Não se pode fazer ditaduras de pensamento. Houve o
mesmo contra Darwin, Einstein, Marx. Sempre que um pensador muda o olhar do
homem sobre si mesmo, e é o caso de Freud, há uma recorrente vontade de
destruí-lo.
Fonte: Aqui
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