quarta-feira, 9 de setembro de 2015

José Eduardo Agualusa - "Aquele menino morto na praia"


José Eduardo Agualusa
Foto: Fabio Seixo / Agência O Globo

Aquele menino morto na praia

José Eduardo Agualusa - 07/09/2015

Não teremos democracia em casa apoiando ditaduras alheias

Na Islândia, o governo anunciou a disponibilidade para receber 50 refugiados sírios. Indignada com a mesquinhez dos números, a escritora Bryndís Björgvinsdóttir lançou um apelo através do Facebook para que os seus compatriotas se pronunciassem sobre o assunto. Em menos de 24 horas, dez mil islandeses prontificaram-se a abrir as portas das suas casas para receber refugiados. A impressionante vaga de solidariedade levou o governo a rever a proposta original. A Islândia, importa realçar, é um pequeno país, com apenas 330 mil habitantes, metade da população de João Pessoa.
Há várias lições que se podem retirar deste episódio: a primeira tem a ver com vergonha e redenção. A enorme tragédia em curso, com vagas de refugiados, de diversas proveniências, que tentam todos os dias alcançar solo seguro, expôs ao mundo uma Europa dividida, enfraquecida e moralmente degradada.
Durante décadas, os europeus orgulharam-se da sua suposta superioridade moral. É verdade que a Europa deixou de ser o centro do mundo — reconheciam eles. — É verdade que perdeu os impérios e vem perdendo, a cada dia, influência política e cultural; contudo, é ainda uma referência ética. Vemos grupos de polícias a perseguirem e espancarem velhos, mulheres, crianças, que conseguiram fugir de um país em guerra.
Vemos, pois, polícias a espancarem vítimas. Vemos a seguir os cadáveres flutuando no mediterrâneo, porque ninguém os quis socorrer. A imagem do corpo de um menino de três anos, numa praia da Turquia, correu mundo com a legenda: “a Humanidade deu à costa”.
Vemos tudo isto e compreendemos, horrorizados, que, afinal, os bárbaros já tomaram a Europa. Os bárbaros estão instalados no poder, na Hungria, mas também em Portugal. Os bárbaros governam o Reino Unido, a França e a Itália. Os bárbaros triunfaram.
A atitude do povo da Islândia devolve-nos alguma esperança na Humanidade, ao mesmo tempo que salva o rosto envergonhado da Europa.
Com a sua resposta rápida e generosa os islandeses mostraram-nos que a indignação, bem dirigida, ainda pode (co)mover as verdadeiras democracias. As democracias — tantas vezes nos esquecemos disto — fazem-se com o povo.
Há poucos dias a Al Jazeera entrevistou um refugiado de 13 anos, Kinan Masalmeh. “Tem alguma mensagem para os europeus?” — foi uma das perguntas. O menino não hesitou:
“Nós não queremos vir para a Europa.” — disse. — “Só queremos que ajudem a parar a guerra na Síria”.
Simples assim. Não teremos democracia em casa, apoiando ditaduras alheias. Não teremos paz, se não houver paz na casa dos vizinhos. Não haverá desenvolvimento para uns, se não houver para todos. A Hungria bem pode erguer os mais altos muros. Israel pode erguer muros.
Os Estados Unidos podem erguer muros. Muros degradam sobretudo aqueles que os erguem. Além disso não têm conseguido evitar que milhares de pessoas desesperadas os ultrapassem. O desespero encontra sempre soluções para vencer os piores obstáculos.
O que virá depois dos muros? Ordena-se o fuzilamento dos migrantes? Afundam-se a tiros de canhão as pequenas embarcações que os trazem? Prendem-se os refugiados sobreviventes e todos aqueles que os procurem ajudar?
Não basta que nos horrorizemos ao ver a imagem do menino morto na praia. “Não consigo olhar para aquelas fotografias” — queixam-se centenas de pessoas nas redes sociais. Não conseguem?! Pois é bom que olhem! É bom que vejam o menino morto, e que vejam também todo o imenso horror que o trouxe até àquela praia turca.
Somos todos culpados pela morte dele, seja devido à nossa cumplicidade direta, apoiando guerras, ou pela nossa inércia, sempre que desviamos o olhar. Aquele menino continuará a morrer nessa mesma praia, em outras praias do mundo, enquanto não nos mobilizarmos em conjunto para impedir que prossiga a devastação da Síria.
Enquanto não nos mobilizarmos todos para que a democracia triunfe em Angola, no Zimbábue ou na China. Enquanto não nos mobilizarmos para impor modelos de desenvolvimento mais justos, que respeitem o ambiente, e ajudem a arrancar da miséria milhões de pessoas em todo o mundo.
Vale a pena recordar aqui o artigo 14 da Declaração Universal dos Direitos do Homem: “Toda a pessoa sujeita a perseguição tem o direito de procurar e de beneficiar de asilo em outros países”.
O menino morto, nessa famosa foto que tantos não conseguem encarar, chamava-se Aylan Kurdi. Tinha um irmão de cinco anos, Galip. A mãe chamava-se Riha. Só o pai, Abdullah, sobreviveu ao desastre. Espero que um dia ele nos consiga perdoar.

FONTE: Aqui

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