José Eduardo Agualusa - "Aquele menino morto na praia"
Aquele menino morto na praia
José Eduardo
Agualusa - 07/09/2015
Não teremos
democracia em casa apoiando ditaduras alheias
Na
Islândia, o governo anunciou a disponibilidade para receber 50 refugiados
sírios. Indignada com a mesquinhez dos números, a escritora Bryndís
Björgvinsdóttir lançou um apelo através do Facebook para que os seus
compatriotas se pronunciassem sobre o assunto. Em menos de 24 horas, dez mil
islandeses prontificaram-se a abrir as portas das suas casas para receber
refugiados. A impressionante vaga de solidariedade levou o governo a rever a
proposta original. A Islândia, importa realçar, é um pequeno país, com apenas
330 mil habitantes, metade da população de João Pessoa.
Há várias
lições que se podem retirar deste episódio: a primeira tem a ver com vergonha e
redenção. A enorme tragédia em curso, com vagas de refugiados, de diversas
proveniências, que tentam todos os dias alcançar solo seguro, expôs ao mundo
uma Europa dividida, enfraquecida e moralmente degradada.
Durante
décadas, os europeus orgulharam-se da sua suposta superioridade moral. É
verdade que a Europa deixou de ser o centro do mundo — reconheciam eles. — É
verdade que perdeu os impérios e vem perdendo, a cada dia, influência política
e cultural; contudo, é ainda uma referência ética. Vemos grupos de polícias a
perseguirem e espancarem velhos, mulheres, crianças, que conseguiram fugir de
um país em guerra.
Vemos,
pois, polícias a espancarem vítimas. Vemos a seguir os cadáveres flutuando no
mediterrâneo, porque ninguém os quis socorrer. A imagem do corpo de um menino
de três anos, numa praia da Turquia, correu mundo com a legenda: “a Humanidade
deu à costa”.
Vemos tudo
isto e compreendemos, horrorizados, que, afinal, os bárbaros já tomaram a
Europa. Os bárbaros estão instalados no poder, na Hungria, mas também em
Portugal. Os bárbaros governam o Reino Unido, a França e a Itália. Os bárbaros
triunfaram.
A atitude
do povo da Islândia devolve-nos alguma esperança na Humanidade, ao mesmo tempo
que salva o rosto envergonhado da Europa.
Com a sua
resposta rápida e generosa os islandeses mostraram-nos que a indignação, bem
dirigida, ainda pode (co)mover as verdadeiras democracias. As democracias —
tantas vezes nos esquecemos disto — fazem-se com o povo.
Há poucos
dias a Al Jazeera entrevistou um refugiado de 13 anos, Kinan Masalmeh. “Tem
alguma mensagem para os europeus?” — foi uma das perguntas. O menino não
hesitou:
“Nós não
queremos vir para a Europa.” — disse. — “Só queremos que ajudem a parar a
guerra na Síria”.
Simples
assim. Não teremos democracia em casa, apoiando ditaduras alheias. Não teremos
paz, se não houver paz na casa dos vizinhos. Não haverá desenvolvimento para
uns, se não houver para todos. A Hungria bem pode erguer os mais altos muros.
Israel pode erguer muros.
Os Estados
Unidos podem erguer muros. Muros degradam sobretudo aqueles que os erguem. Além
disso não têm conseguido evitar que milhares de pessoas desesperadas os
ultrapassem. O desespero encontra sempre soluções para vencer os piores
obstáculos.
O que virá
depois dos muros? Ordena-se o fuzilamento dos migrantes? Afundam-se a tiros de
canhão as pequenas embarcações que os trazem? Prendem-se os refugiados
sobreviventes e todos aqueles que os procurem ajudar?
Não basta
que nos horrorizemos ao ver a imagem do menino morto na praia. “Não consigo
olhar para aquelas fotografias” — queixam-se centenas de pessoas nas redes
sociais. Não conseguem?! Pois é bom que olhem! É bom que vejam o menino morto,
e que vejam também todo o imenso horror que o trouxe até àquela praia turca.
Somos todos
culpados pela morte dele, seja devido à nossa cumplicidade direta, apoiando
guerras, ou pela nossa inércia, sempre que desviamos o olhar. Aquele menino
continuará a morrer nessa mesma praia, em outras praias do mundo, enquanto não
nos mobilizarmos em conjunto para impedir que prossiga a devastação da Síria.
Enquanto
não nos mobilizarmos todos para que a democracia triunfe em Angola, no Zimbábue
ou na China. Enquanto não nos mobilizarmos para impor modelos de
desenvolvimento mais justos, que respeitem o ambiente, e ajudem a arrancar da
miséria milhões de pessoas em todo o mundo.
Vale a pena
recordar aqui o artigo 14 da Declaração Universal dos Direitos do Homem: “Toda
a pessoa sujeita a perseguição tem o direito de procurar e de beneficiar de
asilo em outros países”.
O menino
morto, nessa famosa foto que tantos não conseguem encarar, chamava-se Aylan
Kurdi. Tinha um irmão de cinco anos, Galip. A mãe chamava-se Riha. Só o pai,
Abdullah, sobreviveu ao desastre. Espero que um dia ele nos consiga perdoar.
FONTE: Aqui
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