sábado, 19 de setembro de 2015

Algumas notas sobre a nova posição de Mia Couto em relação às cotas raciais no Brasil


Algumas notas sobre a nova posição de Mia Couto em relação às cotas raciais no Brasil

José de Sousa Miguel Lopes

Só agora, e por puro acaso, descobri a entrevista que Mia Couto deu à Revista Planeta em abril de 2015 e publicada aqui
À pergunta O sr. conhece a experiência brasileira da política de cotas raciais? deu esta resposta:
Evito falar disso. Fiz, uma vez, um comentário sobre a política de cotas no Brasil e fui atacado de maneira virulenta, o que sugere que fala-se nesse assunto movido mais por paixão do que por razão. É importante corrigir distorções provocadas por uma dominação secular baseada na raça (...).
Não tenho conhecimento sobre alguém que tenha feito essa crítica em resposta a uma entrevista que Mia Couto deu à revista Época na data de 14 de abril de 2014. Pesquisei na internet sobre “Mia Couto e cotas raciais no Brasil” e encontrei três entrevistas e apenas uma única crítica, que é de minha autoria e que foi publicada no dia 13 de maio de 2014. Então, embora não possa assegurar que esta resposta de Mia Couto, em abril de 2015, se refira à minha crítica, há 99% de possibilidades de que, de fato, o seja. Se não se estiver referindo a mim, mas a outro crítico, então não será apenas uma crítica que ele recebeu sobre as cotas raciais, mas sim duas. Para o caso isso não é relevante. O que importa é ver o estranho percurso de Mia Couto ao avaliar a justeza das cotas raciais. Em muito pouco tempo o escritor moçambicano consegue tomar três distintas posições sobre o assunto!
Vamos então historiar esta resposta de Mia Couto publicada na revista Planeta. Em 1º lugar diz que evita falar sobre cotas raciais. Afirma que fez uma vez um comentário sobre a política de cotas e que foi atacado de maneira virulenta. Na verdade, Mia Couto já tinha falado, numa entrevista anterior a esta, sobre as cotas raciais (entrevista ao Programa Roda Viva da TV Cultura em finais de 2011). Nesta entrevista ele afirmou que não gostaria de falar sobre cotas raciais porque desconhecia a realidade brasileira. Achei a resposta sensata.
Mas na entrevista à revista Época, passados que foram dois anos e alguns meses, ou seja, em14/04/2014, ele já toma uma posição muito clara e objetiva, subentendendo-se que já não mais desconhecia a realidade brasileira! Disse Mia Couto “Não tenho simpatia nenhuma pelas cotas. A cota avilta quem recebe e não diz nada de quem a dá. É preciso que não haja cotas, e sim que se resolvam os problemas radicalmente”. Estranho como em pouco mais de dois anos ele passou a conhecer melhor a realidade brasileira, quando nesse período fez algumas viagens “relâmpago” ao Brasil. Tudo bem, ele conseguiu, em dois anos e poucos meses, adquirir a segurança para se pronunciar sobre assunto tão espinhoso.
Partindo do princípio, como disse atrás, que a pessoa a quem ele se refere na entrevista de abril de 2015 sou eu, importa fazer um breve comentário. Afirma Mia Couto que foi atacado (?!) de maneira virulenta (?!). A palavra atacado não é utilizada ingenuamente. Num país como Moçambique, que tem vivido um relacionamento íntimo com as armas desde a longa noite colonial, com o pós-independência com as agressões da Rodésia do Sul e da África do Sul, posteriormente, com o banditismo armado da Renamo e, presentemente, se constituindo como o único país do mundo com dois exércitos, é natural que a linguagem de alguns de nossos compatriotas acabe sendo contaminada por uma linguagem bélica. A crítica é, assim, entendida como um ataque, não como uma contribuição construtiva para dirimir posições distintas sobre um determinado assunto. Mas não foi um ataque qualquer; esse ataque foi virulento. Ora eu em nenhum momento ataquei Mia Couto e, muito menos, de forma virulenta.
Inclusive tive o cuidado de enviar para ele uma carta onde eu criticava a posição dele sobre as cotas raciais no Brasil. Aguardei que me respondesse, nem que fosse algo do tipo “Recebi e em breve responderei”. Após duas semanas sem resposta, concluí que o meu compatriota não me iria responder. Decidi então publicar no Observatório de Imprensa a carta que escrevi para ele. Apenas fiz pequenas modificações de forma, pois agora o texto seria publicado na mídia. Portanto o conteúdo era o mesmo constante na carta que lhe dirigi. Veja-se o texto que foi publicado em 13/05/2014 clicando aqui
Como se pode ver, começo minha escrita com estas palavras: “Compatriota de Mia Couto, sigo sua escrita atentamente e sempre com um misto de entusiasmo e encantamento. Possuo todos os seus livros, meus arquivos de computador têm inúmeros textos seus bem como entrevistas. Tenho divulgado sua obra a inúmeros amigos e colegas universitários”. Em outro ponto do meu texto escrevo o seguinte: “Mia Couto tem uma audiência imensa (mais do que justa) nas comunidades de língua portuguesa, sobretudo no Brasil e em outros países, onde seus livros e seus textos e entrevistas são bastante apreciados”. Se isto é ser virulento...
Mia Couto diz também que “fala-se nesse assunto movido mais por paixão do que por razão”. Claro que sem explicitar onde está a paixão no texto que foi escrito e onde foi abandonada a razão no mesmo texto, fica difícil entender esta frase do Mia Couto. Em suma, o leitor fica mergulhado na eterna dúvida!
Nesta última entrevista Mia Couto diz que “É importante corrigir distorções provocadas por uma dominação secular baseada na raça”. Bingo!!! Meu compatriota tem uma nova posição sobre as cotas. Agora já diz que É importante corrigir distorções provocadas por uma dominação secular baseada na raça” que é o princípio basilar de quem defende as cotas. Então ele está agora em perfeita sintonia com a minha posição. Dito de outro modo, ele passou de um desconhecedor do assunto, para um crítico das cotas e, finalmente, para um defensor das cotas. Só posso saudar este mais recente posicionamento de meu compatriota. No entanto, este percurso sinuoso poderia ter sido evitado se ele, sem qualquer tipo de constrangimento, tivesse respondido à minha carta. Uma troca de ideias seria muito saudável para ambos. Não seria necessário levar o assunto para a imprensa. Ele preferiu o silêncio. Assim tudo leva a crer que para ele é insuportável receber alguma crítica. Em abono da verdade, salvo duas ou três críticas publicadas em jornais moçambicanos há mais de duas décadas, nunca mais vi nenhuma crítica ao Mia Couto o que considero extremamente relevante. E essas críticas, se a memória não me falha, se relacionavam a certo despeito por parte de um ou dois colegas de Mia Couto que questionavam o fato de ele receber tantos convites no estrangeiro e também por ser agraciado com vários prêmios literários. Enfim, o tipo de crítica que, concordo, não mereceria resposta, como não mereceu, pois baseada em algo estranho ao próprio escritor. É importante destacar que sempre que leio alguma entrevista de Mia Couto fico emocionado por reconhecer que temos, praticamente, as mesmas posições sobre os mais variados assuntos. A diferença é que Mia Couto expressa literariamente suas ideias com o brilhantismo que eu não possuo.
Continuo a ter a mesma admiração pelo trabalho literário do meu compatriota. Se tiverem dúvidas, vejam que depois de eu ter publicado o meu texto criticando suas posições sobre as cotas, continuei a publicar no meu blog num total de 13 postagens, textos, poemas, entrevistas e análises elogiosas sobre Mia Couto. Vejam aqui
Minha relação com este fabuloso homem das letras não sofreu nenhum arranhão. Já sua atitude em relação à crítica é, no mínimo, estranha...
Parece ficar claro que meu compatriota não aceita críticas. Será porque ter subido ao Everest ou talvez mesmo ao Olimpo, o levou a colocar-se acima dos comuns mortais?
Se for isso, apenas poderei dizer que se exerceu violência para com ele, pois não se deve ter esse comportamento com quem já alcançou o Olimpo! É uma absoluta falta de respeito e seus eventuais críticos só devem penitenciar-se por colocarem em causa a sua omnisciência.

2 comentários:

Márcia Siqueira 20 de setembro de 2015 às 13:14  

Quando as manifestações pessoais se contradizem realmente são passíveis de críticas. Parabenizo ao Sr. José de Souza Miguel Lopes o qual sabiamente percebeu as contradições existentes, colocando-as de forma respeitosa. Lamentavelmente as pessoas muitas vezes não estão preparadas para receberem críticas. Se colocam de forma concreta e donos de uma verdade incontestável aos seus olhos. Porém tal procedimento não cala àqueles detentores do saber que possuem a coragem e a elegância ao se manifestarem.

Ângela 21 de setembro de 2015 às 06:32  

Brilhante Miguel! É muito difícil criticar "verdades cristalizadas", mais difícil ainda é consegui que alguém convincente dessas verdades, leia algo diferente e mude seu ponto de vista. Você conseguiu esta façanha, Parabéns!

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