terça-feira, 18 de abril de 2017

MARCELO GLEISER: O papel do Estado e dos cientistas em projetos de produção de armas

Ilustração de Alex Kidd para ilustríssima

O papel do Estado e dos cientistas em projetos de produção de armas

MARCELO GLEISER

15/04/2017  


RESUMO Físico teórico discute o papel de cientistas em projetos que resultaram na produção de armas, como as de destruição em massa. O exemplo mais conhecido é o da bomba atômica, mas a aliança entre pesquisadores e Estado vem de longe. A decisão moral sobre o uso do conhecimento, diz o autor, é apenas dos políticos.
Muito antes de o início do século 17 marcar o nascimento da ciência moderna, artesãos desenvolveram ligas metálicas, arcos mais precisos, pólvora e diversos outros artefatos que o Estado pretendia empregar com finalidade militar.
A pedido do rei Gelão 2º, por exemplo, o grande inventor e matemático grego Arquimedes (287-212 a.C.) projetou armas para proteger a cidade de Siracusa das investidas romanas. De acordo com relatos históricos (talvez exagerados), ele construiu catapultas e valeu-se de espelhos e lentes gigantes para incendiar navios dos invasores.
Felizmente, essa não me parece ser a principal motivação dos jovens que procuram o rumo da ciência. A maioria escolhe essa carreira atraída pelo estudo da natureza em todas as suas manifestações, vivas (nas áreas biológicas) e não vivas (nas físicas), ou para desenvolver tecnologias que possam melhorar a qualidade de vida: gerar mais conforto e energia, produzir mais comida, proporcionar mais saúde.
Por outro lado, excluindo alguns poucos tópicos, a maioria absoluta dos campos de pesquisa necessita de fomento, seja da iniciativa privada, seja do governo.
É neste ponto que se forma a aliança entre a ciência e o Estado. Sua intensidade depende das circunstâncias políticas. Como regra, em tempos de guerra ou durante regimes autoritários, o pacto se fortalece e o Estado engaja um bom número de pesquisadores na defesa de interesses estratégicos.
As reações dos cientistas são variadas. Se os irmãos Wright (Wilbur, 1867-1912, e Orville, 1871-1948) não tiveram escrúpulos ao vender para o Exército dos Estados Unidos os aviões que inventaram, o uso de aeronaves como arma de guerra horrorizou Santos Dumont (1873-1932), a ponto de isso possivelmente ter contribuído para o seu suicídio.
Na Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a ciência teve impacto decisivo. Não por acaso, o conflito muitas vezes é chamado de "guerra dos químicos", pelo emprego de gases venenosos nas frentes de batalha, com resultados devastadores para ambos os lados. Mais de 124 mil toneladas dessas substâncias foram utilizadas, numa violação à Convenção de Haia de 1899.
Na Alemanha, grandes empresas, como Bayer, Hoechst e Basf, juntaram-se ao instituto de pesquisas Kaiser Wilhelm, sob direção de Fritz Haber (1868-1934, Nobel de Química de 1918 pela descoberta da síntese do amoníaco), para desenvolver bombas capazes de espalhar os gases nas trincheiras.
A contratação de empresas privadas pelo Estado é comum nesses períodos. Em geral, os vencedores são aqueles que detêm as tecnologias mais avançadas. Quando necessário, o poder público cria centros complexos de pesquisa dedicados ao desenvolvimento de ferramentas bélicas e contrata times de cientistas para chefiar os estudos, como no caso de Haber.
A aliança entre o Estado e a ciência é vista como essencial para proteger a população e a hegemonia estatal. O cientista, patriota, vê-se encurralado. Sabe que seus conhecimentos podem defender seu país e sua comunidade, mas não ignora a devastação que pode ajudar a provocar.
BOMBA NUCLEAR
Se a Primeira Guerra Mundial foi dos químicos, a Segunda (1939-1945) foi dos físicos. Entre a invenção do radar em 1935 e as explosões das bombas atômicas em 1945, a aplicação de conceitos novos da física no desenvolvimento de equipamentos de detecção e armamentos de destruição teve um papel essencial na vitória dos Aliados, despertando uma percepção inédita a respeito do poder da ciência.
Depois do primeiro teste da bomba atômica no deserto de Alamogordo, no Novo México, o físico e diretor do Projeto Manhattan, J. Robert Oppenheimer (1904-1967), citou o Bhagavad Gita, escritura hindu, para expressar seus sentimentos: "Agora sou a morte, destruidora de mundos".
Para Oppenheimer e demais cientistas e militares presentes, era claro que o mundo jamais seria o mesmo. Pela primeira vez, a humanidade alcançara um poder de destruição de proporções globais.
Enquanto muitos cientistas se posicionavam veementemente contra o uso de armas nucleares em qualquer conflito, outros não viam outra forma de deter o inimigo.
O orgulho nacional, a curiosidade científica e o medo de que os nazistas também pudessem desenvolver a bomba atômica se misturavam para sintetizar um combustível poderoso. (Após a guerra, ficou claro que os nazistas estavam longe de construir o artefato nuclear. Durante o conflito, porém, não havia informação segura.)
Mesmo assim, continua difícil entender por que aquele grupo de cientistas contribuiu para a construção de uma arma tão nefasta. Os pesquisadores do Projeto Manhattan eram, em sua maioria, indivíduos de natureza pacífica, intelectualmente abertos, sempre dispostos a dividir o conhecimento entre si.
Por outro lado, uma vez construída a arma nuclear, a decisão de utilizá-la já não pertencia aos cientistas que a criaram.
Esse é um ponto fundamental na aliança entre o Estado e a ciência. Mesmo que, ocasionalmente, cientistas possam trabalhar de forma entusiasmada no desenvolvimento de uma nova arma, a decisão sobre como e onde usá-la vem do Poder Executivo, em geral com o apoio do Legislativo (a não ser em regimes autoritários, é claro).
O sucesso da ciência norte-americana durante a Segunda Guerra Mundial iniciou uma nova era no fomento da pesquisa, tanto básica como aplicada.
No pós-guerra, a corrida armamentista disparou, aquecida pela Guerra Fria e pelo medo de um ataque soviético. Na década de 1960, a corrida espacial pôs mais lenha no fogo. Nos EUA e na União Soviética, a ciência básica era considerada essencial para a geração de ideias que poderiam ser usadas em tecnologias de defesa.
ESPÍRITO PIONEIRO
Em julho de 1945, o engenheiro Vannevar Bush (1890-1974), diretor do Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento Científico dos EUA, escreveu um relatório para Harry S. Truman (1884-1972), presidente dos EUA de 1945 a 1953. Intitulado "Ciência: A Fronteira sem Fim", o documento dizia:
"O espírito dos pioneiros ainda é vigoroso em nossa nação. A ciência oferece território inexplorado para o pioneiro que detém os instrumentos necessários para esse objetivo. As recompensas dessa exploração para a nação e para o indivíduo são enormes. O progresso científico é a chave essencial para a segurança nacional, para nossa saúde, para gerar novos empregos e qualidade de vida mais elevada, para nosso progresso cultural".
A ciência é uma oportunidade para o indivíduo e para a nação. Não pode progredir sozinha; precisa de apoio do Estado e da iniciativa privada. Obviamente, a pesquisa industrial é essencial e hoje predomina, inclusive na corrida espacial.
O que raras vezes se discute, mesmo que sempre esteja implícito, é a moralidade das escolhas que são (ou não) feitas por cientistas que trabalham nas diversas áreas de pesquisa.
Rotular a ciência como sendo moral ou imoral não faz sentido. A ciência em si é amoral, uma coletânea de fatos sobre o mundo obtidos pacientemente por profissionais que respeitam uma metodologia de análise quantitativa de dados e observações.
Isso vale para cientistas que estudam frentes de choque em detonações explosivas, para aqueles que projetam ou trabalham nas linhas de montagem de bombas e para aqueles que buscam componentes fundamentais da matéria.
A questão do uso correto ou errado da ciência emerge na relação entre os cientistas e seus patronos.
É verdade que ter uma arma não equivale a utilizá-la. Desde o bombardeio de Nagasaki pelos EUA, em 1945, nenhuma bomba atômica foi usada. A política de prevenção de conflitos nucleares, ao menos por ora, funciona.
Pode-se argumentar, ao mesmo tempo, que possuir uma arma é condição necessária para utilizá-la. Manter vasta coleção de artefatos nucleares constitui estratégia de pacificação um tanto instável.
E aí está o cerne da questão na aliança entre a ciência e o Estado. Essa aliança é instável. A decisão de usar armas, inclusive as nucleares, cabe ao líder do país –em última instância, a pessoa responsável por seu uso. Não compete aos cientistas resolver nada nesse campo político-militar.
Portanto, o que dizer do cientista que trabalha nessa área?
Não me parece que exista resposta simples. Há várias profissões que podem prejudicar pessoas. Há muitos modos de ferir o outro. Se os cientistas o fazem dentro da indústria bélica, é porque escolheram fazê-lo, por uma ideologia de patriotismo ou de orgulho nacionalista. A decisão moral sobre como a ciência é usada, porém, está nas mãos daqueles que detêm o poder de decidir. Por isso, é essencial que o cidadão saiba escolher seus líderes políticos. Ou onde trabalha.

MARCELO GLEISER, 58, é professor titular de física, astronomia e filosofia natural no Dartmouth College, nos EUA

FONTE: Aqui

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