MARCELO GLEISER: O papel do Estado e dos cientistas em projetos de produção de armas
O papel do Estado e dos cientistas em projetos de produção
de armas
MARCELO GLEISER
15/04/2017
RESUMO Físico teórico discute o papel de cientistas em projetos que
resultaram na produção de armas, como as de destruição em massa. O exemplo mais
conhecido é o da bomba atômica, mas a aliança entre pesquisadores e Estado vem
de longe. A decisão moral sobre o uso do conhecimento, diz o autor, é apenas
dos políticos.
Muito antes de o início do século 17 marcar o nascimento da
ciência moderna, artesãos desenvolveram ligas metálicas, arcos mais precisos,
pólvora e diversos outros artefatos que o Estado pretendia empregar com
finalidade militar.
A pedido do rei Gelão 2º, por exemplo, o grande inventor e
matemático grego Arquimedes (287-212 a.C.) projetou armas para proteger a
cidade de Siracusa das investidas romanas. De acordo com relatos históricos
(talvez exagerados), ele construiu catapultas e valeu-se de espelhos e lentes
gigantes para incendiar navios dos invasores.
Felizmente, essa não me parece ser a principal motivação dos
jovens que procuram o rumo da ciência. A maioria escolhe essa carreira atraída
pelo estudo da natureza em todas as suas manifestações, vivas (nas áreas
biológicas) e não vivas (nas físicas), ou para desenvolver tecnologias que
possam melhorar a qualidade de vida: gerar mais conforto e energia, produzir
mais comida, proporcionar mais saúde.
Por outro lado, excluindo alguns poucos tópicos, a maioria
absoluta dos campos de pesquisa necessita de fomento, seja da iniciativa privada,
seja do governo.
É neste ponto que se forma a aliança entre a ciência e o Estado.
Sua intensidade depende das circunstâncias políticas. Como regra, em tempos de
guerra ou durante regimes autoritários, o pacto se fortalece e o Estado engaja
um bom número de pesquisadores na defesa de interesses estratégicos.
As reações dos cientistas são variadas. Se os irmãos Wright (Wilbur, 1867-1912, e Orville,
1871-1948) não tiveram escrúpulos ao vender para o Exército dos Estados Unidos
os aviões que inventaram, o uso de aeronaves como arma de guerra horrorizou
Santos Dumont (1873-1932), a ponto de isso possivelmente ter contribuído para o
seu suicídio.
Na Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a ciência teve impacto
decisivo. Não por acaso, o conflito muitas vezes é chamado de "guerra dos
químicos", pelo emprego de gases venenosos nas frentes de batalha, com
resultados devastadores para ambos os lados. Mais de 124 mil toneladas dessas
substâncias foram utilizadas, numa violação à Convenção de Haia de 1899.
Na Alemanha, grandes empresas, como Bayer, Hoechst e Basf, juntaram-se ao
instituto de pesquisas Kaiser Wilhelm, sob direção de Fritz Haber (1868-1934,
Nobel de Química de 1918 pela descoberta da síntese do amoníaco), para
desenvolver bombas capazes de espalhar os gases nas trincheiras.
A contratação de empresas privadas pelo Estado é comum nesses
períodos. Em geral, os vencedores são aqueles que detêm as tecnologias mais
avançadas. Quando necessário, o poder público cria centros complexos de
pesquisa dedicados ao desenvolvimento de ferramentas bélicas e contrata times
de cientistas para chefiar os estudos, como no caso de Haber.
A aliança entre o Estado e a ciência é vista como essencial para
proteger a população e a hegemonia estatal. O cientista, patriota, vê-se
encurralado. Sabe que seus conhecimentos podem defender seu país e sua
comunidade, mas não ignora a devastação que pode ajudar a provocar.
BOMBA NUCLEAR
Se a Primeira Guerra Mundial foi dos químicos, a Segunda
(1939-1945) foi dos físicos. Entre a invenção do radar em 1935 e as explosões
das bombas atômicas em 1945, a aplicação de conceitos novos da física no
desenvolvimento de equipamentos de detecção e armamentos de destruição teve um
papel essencial na vitória dos Aliados, despertando uma percepção inédita a
respeito do poder da ciência.
Depois do primeiro teste da bomba atômica no deserto de
Alamogordo, no Novo México, o físico e diretor do Projeto Manhattan, J. Robert
Oppenheimer (1904-1967), citou o Bhagavad Gita, escritura hindu, para expressar
seus sentimentos: "Agora sou a morte, destruidora de mundos".
Para Oppenheimer e demais cientistas e militares presentes, era
claro que o mundo jamais seria o mesmo. Pela primeira vez, a humanidade
alcançara um poder de destruição de proporções globais.
Enquanto muitos cientistas se posicionavam veementemente contra o
uso de armas nucleares em qualquer conflito, outros não viam outra forma de
deter o inimigo.
O orgulho nacional, a curiosidade científica e o medo de que os
nazistas também pudessem desenvolver a bomba atômica se misturavam para
sintetizar um combustível poderoso. (Após a guerra, ficou claro que os nazistas
estavam longe de construir o artefato nuclear. Durante o conflito, porém, não
havia informação segura.)
Mesmo assim, continua difícil entender por que aquele grupo de
cientistas contribuiu para a construção de uma arma tão nefasta. Os
pesquisadores do Projeto Manhattan eram, em sua maioria, indivíduos de natureza
pacífica, intelectualmente abertos, sempre dispostos a dividir o conhecimento
entre si.
Por outro lado, uma vez construída a arma nuclear, a decisão de
utilizá-la já não pertencia aos cientistas que a criaram.
Esse é um ponto fundamental na aliança entre o Estado e a ciência.
Mesmo que, ocasionalmente, cientistas possam trabalhar de forma entusiasmada no
desenvolvimento de uma nova arma, a decisão sobre como e onde usá-la vem do
Poder Executivo, em geral com o apoio do Legislativo (a não ser em regimes
autoritários, é claro).
O sucesso da ciência norte-americana durante a Segunda Guerra
Mundial iniciou uma nova era no fomento da pesquisa, tanto básica como
aplicada.
No pós-guerra, a corrida armamentista disparou, aquecida pela
Guerra Fria e pelo medo de um ataque soviético. Na década de 1960, a corrida
espacial pôs mais lenha no fogo. Nos EUA e na União Soviética, a ciência básica
era considerada essencial para a geração de ideias que poderiam ser usadas em
tecnologias de defesa.
ESPÍRITO PIONEIRO
Em julho de 1945, o engenheiro Vannevar Bush (1890-1974), diretor
do Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento Científico dos EUA, escreveu um
relatório para Harry S. Truman (1884-1972), presidente dos EUA de 1945 a 1953.
Intitulado "Ciência: A Fronteira sem Fim", o documento dizia:
"O espírito dos pioneiros ainda é vigoroso em nossa nação. A
ciência oferece território inexplorado para o pioneiro que detém os
instrumentos necessários para esse objetivo. As recompensas dessa exploração
para a nação e para o indivíduo são enormes. O progresso científico é a chave
essencial para a segurança nacional, para nossa saúde, para gerar novos
empregos e qualidade de vida mais elevada, para nosso progresso cultural".
A ciência é uma oportunidade para o indivíduo e para a nação. Não
pode progredir sozinha; precisa de apoio do Estado e da iniciativa privada.
Obviamente, a pesquisa industrial é essencial e hoje predomina, inclusive na
corrida espacial.
O que raras vezes se discute, mesmo que sempre esteja implícito, é
a moralidade das escolhas que são (ou não) feitas por cientistas que trabalham
nas diversas áreas de pesquisa.
Rotular a ciência como sendo moral ou imoral não faz sentido. A
ciência em si é amoral, uma coletânea de fatos sobre o mundo obtidos
pacientemente por profissionais que respeitam uma metodologia de análise
quantitativa de dados e observações.
Isso vale para cientistas que estudam frentes de choque em
detonações explosivas, para aqueles que projetam ou trabalham nas linhas de
montagem de bombas e para aqueles que buscam componentes fundamentais da
matéria.
A questão do uso correto ou errado da ciência emerge na relação
entre os cientistas e seus patronos.
É verdade que ter uma arma não equivale a utilizá-la. Desde o bombardeio de
Nagasaki pelos EUA, em 1945, nenhuma bomba atômica foi usada. A política de
prevenção de conflitos nucleares, ao menos por ora, funciona.
Pode-se argumentar, ao mesmo tempo, que possuir uma arma é
condição necessária para utilizá-la. Manter vasta coleção de artefatos
nucleares constitui estratégia de pacificação um tanto instável.
E aí está o cerne da questão na aliança entre a ciência e o
Estado. Essa aliança é instável. A decisão de usar armas, inclusive as
nucleares, cabe ao líder do país –em última instância, a pessoa responsável por
seu uso. Não compete aos cientistas resolver nada nesse campo político-militar.
Portanto, o que dizer do cientista que trabalha nessa área?
Não me parece que exista resposta simples. Há várias profissões
que podem prejudicar pessoas. Há muitos modos de ferir o outro. Se os
cientistas o fazem dentro da indústria bélica, é porque escolheram fazê-lo, por
uma ideologia de patriotismo ou de orgulho nacionalista. A decisão moral sobre
como a ciência é usada, porém, está nas mãos daqueles que detêm o poder de
decidir. Por isso, é essencial que o cidadão saiba escolher seus líderes
políticos. Ou onde trabalha.
MARCELO
GLEISER, 58, é professor titular de física, astronomia e filosofia
natural no Dartmouth College, nos EUA
FONTE: Aqui
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