Noam Chomsky: “Desmantelar o imperialismo é um projeto perfeitamente viável”
ENTREVISTA
Noam Chomsky: “Desmantelar o imperialismo é um projeto
perfeitamente viável”
A poucos meses de completar
91 anos, o anarco-sindicalista e socialista libertário Noam Chomsky defende que desmantelar o imperialismo continua a ser um “projeto perfeitamente
viável”. Sem “razão para o desespero”, a esperança do acadêmico — que se tornou
um dos mais citados da atualidade — é revigorada por movimentos como o EUA
Sunrise e o Extinction Rebellion. No entanto, quando se fala do amanhã, prefere
que as questões sejam dirigidas a quem ainda está para vir.
13/10/2019
Começou por ser um convite
para um café em Nova Iorque no início do ano. Noam Chomsky, que se mudou para
Tucson há três anos para leccionar na Universidade do Arizona, sugeriu remediar
o desencontro de agendas e ofereceu-se a responder por e-mail. O que acabou por
acontecer, ainda que vários meses mais tarde. Conhecido pelas duras críticas
tecidas aos meios de comunicação social — que acusou, várias vezes, de cederem
aos caprichos do capitalismo —, e à política
norte-americana — posição que lhe valeu um lugar na lista de inimigos
de Richard Nixon —, o chamado “pai da linguística moderna” diz continuar
“preocupado” com a paisagem política e social que nos circunda. Destaca como a
raiva e o ressentimento foram o pontapé de partida para a ascensão de
“demagogos”, a tentativa do capitalismo em nos tornar “sacos de batatas” e a
solidão emocional promovida pelas elites.
Mas o que se faz quando a velha ordem parece declinar e ainda
nada se levantou para a substituir? “Não há segredos”, defende o autor de mais
de uma centena de livros sobre política, linguística e media. Ainda assim, há
“boas razões” para desenhar um esquisso do futuro que gostaríamos de ter. O que
o impede? “Isso é uma pergunta que cada pessoa deve fazer a si mesmo. Porque é
que não estou a levar a cabo ações que sei que são viáveis?”
Em países como EUA ou o Brasil, a
descrença nos media acabou
por abrir caminho à disseminação de fake
news, o que ajudou a determinar as eleições. Os media estão
a falhar redondamente às pessoas?
Os media de língua
inglesa, que são os que conheço melhor, têm muitas falhas sérias —são
tópicos que estudei e sobre os quais escrevi durante muitos anos, mas não acho
que possamos simplesmente associar a descrença e a porta aberta para o
fenômeno fake news às
falhas dos media.
No geral, o respeito pelas instituições tem diminuído acentuadamente ao longo
dos anos — pelos parlamentos, pelas empresas, pelos media, pelos tribunais,
tudo, menos pelas instituições militares. As razões são muito mais profundas do
que as falhas dos media.
As políticas socioeconômicas durante a era neoliberal tiveram um impacto
severo. A riqueza concentrou-se fortemente com o poder político, enquanto a
maioria das pessoas estagnou ou viu o seu rendimento cair, e
sentiu-se — justamente — pouco representada pelo sistema
político. Gramsci [filósofo italiano, 1891-1937] escreveu, na sua cela na
prisão, sobre os “sintomas mórbidos” de como a velha ordem declina e nada ainda
se levantou para a substituir. Observamos isto em muitos aspectos da nossa
vida. A raiva e o ressentimento oferecem oportunidades aos demagogos cínicos
como Trump, Bolsonaro ou Salvini, que estão a degradar a arena política, e que
podem descartar a feia realidade pela qual são responsáveis ao dizer que são “fake news”. Bolsonaro
foi ao ponto de rejeitar como fake
news relatórios do seu próprio Governo sobre a destruição da Amazónia,
que o próprio autorizou seguindo o interesse dos seus amigos na mineração e no
agro-negócio. E Trump é um mestre desta arte.
As fake
news são uma forma eficiente de manipulação. Sempre existiram,
mas têm ganho uma nova dimensão, como aconteceu nas últimas eleições nos países
referidos. Que medidas devem os meios de comunicação levar a cabo
para lidar com as fake news?
Não vejo as coisas dessa
forma. As condições sociais como as que referi criam condições sob as quais os
demagogos de extrema-direita podem ganhar poder. Eles podem catalogar as
críticas como fake
news e criar as suas próprias fake news numa escalada sem
precedentes, ao usar os recursos tecnológicos das redes sociais. Vimos isso de
forma dramática na campanha eleitoral de Bolsonaro. Depois das manobras
fraudulentas, que vão sendo expostas, para silenciar o provável vencedor das
eleições (Lula da Silva, o prisioneiro político mais importante do mundo), uma enorme
campanha nas redes sociais foi inventada com as mentiras mais escandalosas para
demonizar a oposição política e apoiar a figura depravada, que foi favorecida
pelas elites brasileiras. Este foi o passo final de um “golpe suave” que
remonta há vários anos.
Nos
Estados Unidos, houve uma campanha semelhante, embora não tenha atingido a
escala ou a vulgaridade do que aconteceu no Brasil. Foi organizada pela empresa
de extrema-direita Cambridge Analytica. Com a plena cooperação
do Facebook, segmentaram
mensagens específicas para os eleitores apoiarem o favorito de direita — o
nível de sucesso é difícil de julgar, mas foi quase certamente muito maior do
que os pequenos esforços russos que despertaram tanta atenção.
EUA, Turquia, Itália, Hungria,
Brasil... vemos presidentes com ideias de extrema-direita a ascender ao
poder em vários países. É este momento comparável, de alguma forma, com o
início da década de 1930?
Se pudermos fazer uma
comparação é a da “falsa tragédia”, como diz a famosa frase de Marx. Eu sou
velho o suficiente para me lembrar da década de 1930: os Camisas Negras [nome
dado à Milícia Voluntária para Segurança Nacional Italiana que apoiava
Mussolini], as Tropas de Assalto [soldados especializados do Exército alemão na
Primeira Guerra Mundial], os campos de concentração que se tornaram campos da
morte, a destruição violenta dos movimentos dos trabalhadores, a purga nas
escolas e universidades, uma doutrina de Gleichschaltung [a política de
uniformização utilizada por Hitler] em que um Estado superpoderoso sob o
partido no poder coordena e controla toda a sociedade, incluindo o mundo dos
negócios. O que vemos hoje é bastante preocupante, mas não são os anos 1930.
Qual é a sua opinião acerca do desempenho
do Governo português?
Não posso fingir que estou
familiarizado com o assunto, mas pelo que pude ir apreendendo, parece-me um dos
desenvolvimentos mais esperançosos do período atual.
Quais são as alternativas plausíveis aos
atuais governos de direita?
Desmantelar o imperialismo é
um projeto perfeitamente viável. Para o fazer, é necessário dar os passos que
já foram dados no passado: educação, organização, protestos, manifestações,
resistência direta, solidariedade para com as vítimas. Assim como já foi feito
antes, muitas vezes com um sucesso considerável.
O que está a impedir que estas
alternativas avancem?
Isso é uma pergunta que cada
pessoa deve perguntar a si mesma. Porque é que eu não estou a levar a cabo ações
que sei que são viáveis?
Alguns
sociólogos, como Daniel Bell [1919-2011], defendem que depois de se alcançar a
ideia de Estado social existe a sensação de que já não é necessário levar
a cabo grandes transformações na sociedade. Bell chegou a dizer que a era da
ideologia estava morta. Seguindo esta perspectiva, devemos romper com a ideia
de consenso relativamente à forma de encarar o sistema que tem sido construída
pela democracia?
A tese de Bell fez pouco
sentido na sua época e há muito que foi consignada às cinzas da história
ideológica. A ideologia sempre esteve viva e a florescer, e tem sido vingativa
durante os anos neoliberais. O Estado social suavizou os contornos duros do
capitalismo, mas tem sido corroído com sucesso pelo ataque neoliberal – uma
questão que é muito bem compreendida, não apenas pela população que sofre as
consequências mas também pela elite. O impacto do trabalho de Thomas
Piketty [economista francês, n. 1971] sobre a desigualdade, coincidindo
com o Occupy e outros movimentos populares, é apenas um exemplo.
É necessário repetir as ações que os
movimentos que marcaram os anos 1960 fizeram, e que deram origem à ideia do
“excesso da democracia”, ou existem outras alternativas de mobilização que
devam ser exploradas?
A ideologia de “excesso de
democracia” foi a resposta amedrontada das elites liberais ao ativismo da
década de 1960, que ameaçou mobilizar a população em geral para a participação
política direta, a libertação da passividade e da obediência, favorecida pela
ideologia liberal. Houve, desde então, grandes esforços para minar os
movimentos sociais, principalmente o movimento laboral, mas também outros, e
para atomizar as pessoas —para transformar a população num “saco de
batatas”, como dizia Karl Marx, quando criticava os Estados autoritários da sua
época. Teve algum sucesso, mas de forma alguma completo. O ativismo permanece
vivo e a funcionar.
Olhando para trás, não há nada de errado com as velhas formas de
mobilização social. A tarefa é empregá-las eficazmente. Isso pode ser feito, e
até certo ponto está a ser feito. Um exemplo da sobrevivência de uma sociedade
organizada são os jovens ativistas do Sunrise Movement [organização
norte-americana que defende a ação política sobre as alterações climáticas],
que conseguiram colocar a ideia de um Green New Deal na agenda política, algo
que seria quase inimaginável há alguns anos. Há, de certeza, um longo caminho a
percorrer, mas não há nenhuma razão para o desespero.
Numa entrevista que deu ao The
Independent, diz que o Antifa [um conglomerado
de grupos de esquerda antifascista nos EUA] deveria seguir um confronto
não violento e métodos de resistência. Quais são os limites da resistência,
nunca responder com violência mesmo quando esta é usada pelos opositores?
Não há controvérsia sobre os
métodos educacionais. O que é preocupante são as ações violentas, uma
especialidade da Antifa — e diferente de outros movimentos populares
que declaram os mesmos objetivos — que se torna um presente de
boas-vindas para a extrema-direita.
Como é que se pode mostrar aos jovens que
são eles que têm o poder?
Os jovens já são energéticos. Mencionei anteriormente o Sunrise Movement, podemos acrescentar a Extinction Rebellion, entre outros. É possível contribuir de todas as formas, entre elas apoiando vínculos com tradições mais antigas de luta, apoiar os seus pensamentos e as suas conquistas. Mas também por participação direta.
Os jovens já são energéticos. Mencionei anteriormente o Sunrise Movement, podemos acrescentar a Extinction Rebellion, entre outros. É possível contribuir de todas as formas, entre elas apoiando vínculos com tradições mais antigas de luta, apoiar os seus pensamentos e as suas conquistas. Mas também por participação direta.
A
atual crise repete várias formas de reduzir a sociedade a indivíduos,
proporcionando a sensação de que vivemos numa solidão permanente. Como podemos
criar ou desenvolver mecanismos de empatia uns pelos outros?
Esse é um objetivo
tradicional e até compreensível da elite. Margaret Thatcher estava
involuntariamente a parafrasear Marx quando declarou que não há sociedade,
apenas indivíduos, que enfrentam sozinhos as forças hostis do mercado: um “saco
de batatas”, sem nenhuma maneira de resistir à ideologia extremista que se
tornou uma forma particularmente selvagem do capitalismo. E a atomização da
sociedade teve efeitos muito claros, não apenas na raiva e ressentimento
disseminado mas em fenômenos como o aumento da mortalidade nos EUA, nos últimos
anos, algo inédito em sociedades desenvolvidas — “mortes de
desespero”, como a crise é conhecida pelos economistas que a estudam,
concentrada entre brancos da classe trabalhadora.
Como podemos superar isso? Não há segredos. Crucialmente,
reconstruir um movimento de trabalho vibrante e ativo, mas também movimentos
populares com base noutras preocupações. E criar instituições baseadas em
solidariedade e ajuda mútua, como cooperativas e empresas que são propriedade
dos trabalhadores, que estão agora a proliferar nas áreas industriais
degradadas dos EUA. Mais uma vez, há um longo caminho a percorrer, mas não há
mistérios a respeito de como proceder.
Já falou várias vezes da crise de valores
do Ocidente. Disse, inclusive, que somos o primeiro poder da história que
combina “uma incrível capacidade tecnológica com um total desrespeito perante o
sofrimento e a miséria de terceiros”. O que podemos esperar no futuro?
Não é difícil construir
visões do tipo de sociedade que gostaríamos de ter, e há certamente boas razões
para formular, pelo menos, orientações gerais. Alguns
ativistas — incluindo velhos — acham que é importante
especificar os objetivos de maneira muito explícita, fornecendo respostas
detalhadas para os problemas e questões que possam surgir. O que sinto é
que realmente não sabemos o suficiente para responder às potenciais questões
com grandes detalhes. Penso que Marx foi muito cauteloso em não dizer
praticamente nada sobre a sociedade pós-capitalista, deixando que as questões
fossem dirigidas ao proletariado liberto.
Fonte: Aqui
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