Maria Rita Kehl: Abortemos o projeto de Cunha
Abortemos o projeto de Cunha
Maria Rita Kehl
05/11/2015
Não é exagero dizer que a vida das
mulheres é ameaçada (por exemplo) pelo projeto de lei 5069/13, do deputado
Eduardo Cunha, que dificulta o aborto legal. Hoje, em apoio ao movimento
#AgoraÉQueSãoElas, cedo o espaço à psicanalista Maria Rita Kehl.
"Meus argumentos em defesa, não
do aborto, mas de sua descriminalização, são públicos há mais de cinco anos. Eu
os defendi em uma das crônicas que escrevi, em 2010, no jornal 'O Estado de S.
Paulo'. Suspeito que o artigo tenha contribuído para o cancelamento daquela
coluna.
Devo dizer que hoje não penso muito
diferente do que pensava em 2010.
Para começar, aborto não é política
de controle de natalidade. É um recurso extremo e doloroso utilizado por
mulheres sem condições materiais ou psicológicas de ter um (ou mais um) filho.
A pauta dos direitos da mulher não começa pela defesa do aborto. Este só se
justifica em último caso. Antes disso, é necessário promover e/ou ampliar
informação e acesso generalizado a métodos contraceptivos –políticas
preventivas modestas, baratas, discretas. Não renderiam grande coisa ao
deputado que lutasse por elas.
Vale lembrar que mulheres não
engravidam sozinhas. Mas o ônus do aborto, assim como o de criar um filho não
planejado, costuma cair sobre elas. A vergonha é delas (nossa), o crime é delas
(nosso), o risco de morte por abortos clandestinos feitos em condições
precárias é delas. É nosso. A acusação moral também recai sobre elas. Sobre
nós. Mas o aborto não é um problema das mulheres. Esta é uma hipocrisia
compartilhada por muitos homens (não todos!), que fingem não ser tão
responsáveis quanto as moças pelos casos de gravidez indesejada.
A expressão 'gravidez indesejada' é
cruel: o que falta a grande parte das mulheres, sobretudo adolescentes, para
manter a gravidez não é desejo. São condições: materiais, emocionais,
familiares. E sobram condições de abandono: quantos homens, ou garotos,
continuam ao lado das mulheres e meninas que engravidaram 'sem querer', como se
o problema não fosse com eles? Só algumas, com muita sorte, conseguem dividir a
responsabilidade pela decisão com o parceiro. São casos em que muitas decidem
não abortar.
Na situação de casa-grande-e-senzala
que ainda caracteriza muitas famílias brasileiras, não causa escândalo que o
filho da casa faça sua iniciação sexual com uma das empregadas. Se a moça
engravidar, será demitida sem assistência. Por justa causa. E o que dirão as
famílias se ela recorrer a um aborto clandestino? E se ela, como quer o novo
projeto de lei, for à polícia dar queixa do estupro: quem lhe dará ouvidos?
Todas nós sabemos o que estamos sujeitas a ouvir nas delegacias, ao denunciar
assédio, estupro ou outras violências praticadas por parceiros: 'Foi você quem
provocou'. Nas delegacias de periferia a falta de respeito é ainda pior.
Até o uso da pílula do dia seguinte,
que provoca a expulsão do óvulo recém fecundado, será proibida se os deputados
decidirem. Já é uma vida humana, dizem os membros da bancada da repulsa ao
sexo. Sim, é uma vida. Mas se fosse humana, a sociedade teria criado ritos para
incluí-la na cultura –batizar e sepultar os óvulos fecundados, por exemplo,
quando expulsos por abortos espontâneos. Parece um absurdo, não é? Parece uma
ideia bizarra. Assim é: porque de fato não os consideramos ainda como seres
humanos. Nomeação e sepultamento são práticas culturais que nos definem como
humanos. Nenhuma delas se aplica a essa forma incipiente de vida.
Vamos falar sério: o que subjaz a
esta pauta retrógrada é a repulsa inconsciente à sexualidade feminina. A
liberdade recém-conquistada do desejo feminino assusta os homens. Seis meses a
dois anos de prisão para aquelas que abortarem os fetos que eles fizeram 'sem
querer'. Eis a versão masculina da repulsa ao sexo.
Mas não são todos os homens que
pensam assim. Só os inseguros. Os machistas de carteirinha. Os violentos, que
batem e justificam: 'Você provocou'. Os brucutus, que estupram e justificam:
'Você provocou'. Os indiferentes, que engravidam a namorada e acusam: 'Você
provocou'. Os que se ressentem (ainda!) que as moças se considerem donas de
seus desejo e destino.
E os oportunistas, claro. Os que
percebem, na revolta passiva dos ressentidos, a chance para suas ambições
medíocres. Escrevo na esperança de que alguns deputados, mesmo afinados com a
pauta conservadora que ameaça as conquistas de direitos civis em nosso país,
não se alinhem automaticamente ao projeto pessoal de poder do presidente da
Câmara.
E agradeço ao Contardo por me ceder
hoje o espaço da sua coluna."
FONTE: Aqui
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