O cinema da Infância
José de Sousa Miguel Lopes
Doutor em História e Filosofia da Educação pela PUC /SP, Professor no Mestrado em Educação na UNINCOR. Tem vários trabalhos publicados no campo da educação, cinema e literatura em periódicos nacionais e internacionais.
Resumo
Neste texto analisaremos o modo como a infância se faz presente na História do cinema. Prestaremos particular atenção a uma temática muito freqüente no cinema sobre a infância, que designaremos por "narrativas iniciáticas". Em seguida, o nosso olhar irá incidir sobre o modo como a infância tem sido trabalhada pela cinematografia dominante. Em contraponto, finalizaremos com uma abordagem a outras cinematografias que buscam, em alguma medida, romper com as formas banais de tratar a infância.
Palavras-chave: Cinema, infância, narrativas iniciáticas.
Introdução
Entendemos a infância como um artefato social e histórico, e não uma simples entidade biológica. Dessa forma, o tipo de infância com que ainda operamos foi construído pela sociedade ocidental moderna há 150 anos. A partir de tal viés histórico, advém outra proposição, segundo a qual o apogeu dessa representação sobre a infância durou, aproximadamente, de 1850 até 1950. A falta de uma visão clara a esse respeito acarretou a produção de teorias psicológicas, ainda hegemônicas, que explicam o desenvolvimento infantil de maneira naturalista e, portanto, operando com classificações e conceituações que almejavam o status de lei universal. Desse modo, essas formulações propuseram categorias de análise fixas e imutáveis para qualquer criança de qualquer tempo e lugar. Cabe lembrar a existência de um padrão etnocêntrico a partir do qual essas teorias foram elaboradas: o padrão sempre foi a criança européia, branca e de lares burgueses. O cenário em que se edificou a concepção clássica de infância começou a mudar em meados da década de 1950. As condições sociais, econômicas e culturais também começaram a se alterar intensa e velozmente, implicando modificações profundas na própria infância. São exemplos de agentes importantes de tal mudança: a ida das mulheres do lar para o mercado de trabalho; o aumento significativo e sempre crescente do número de divórcios; o desaparecimento de uma rede comunitária de apoio à educação das crianças; a recessão econômica, que obrigou a um aumento da jornada de trabalho, e o incremento do papel da mídia na vida diária das crianças, que se torna cada vez mais intenso.
Existe uma idéia de imaginário segundo a qual ele é construído social, cultural e historicamente, a mídia em geral e o cinema em particular são atores centrais de sua elaboração e ele perpassa a sociedade atual, com ressonâncias singulares no tipo de infância da contemporaneidade, que vêm se configurando há algumas décadas.
Como a infância se faz presente no cinema? Na tentativa de responder a essa questão, elaboramos algumas reflexões que gostaríamos de partilhar com o leitor. Nessa perspectiva, faremos uma breve digressão, procurando analisar como, na História do Cinema, têm sido caracterizados os filmes sobre a infância. Prestaremos particular atenção a uma temática muito freqüente no cinema sobre a infância, que designaremos "narrativas iniciáticas". Em seguida, nosso olhar irá incidir sobre o modo como a infância tem sido trabalhada pela cinematografia dominante. Em contraponto, finalizaremos com uma abordagem de outras cinematografias, que buscam, em alguma medida, romper com as formas banais de tratar a infância.
Os filmes sobre a infância: uma tentativa de caracterização
Na história do cinema, os filmes que falam da infância não são considerados um gênero em si, como ocorre com os filmes policiais, os de terror, os dramas ou as comédias. Aparentemente, o único aspecto que os caracteriza, o único ponto que possuem em comum, é a idade de seus protagonistas. Em princípio, a idade não deveria constituir um argumento para definir um gênero.
Feita esta ressalva, pode-se, contudo, constatar que o cinema da infância se apresenta portador de algumas especificidades. Ele não resulta de um qualquer modismo, caso em que seria esporádico, como todos os modismos. Se, no início, a presença desse tipo de cinema revelava-se discreta, paulatinamente, ela foi se ampliando e impondo-se, como se pode constatar desde Chaplin até aos nossos dias.
Saliente-se que não são apenas alguns filmes, mas centenas deles os que foram consagrados à infância, e que alguns (como O garoto, Os 400 golpes, A guerra dos botões, Central do Brasil, Filhos do paraíso) receberam consagração internacional. No anexo, são listados outros filmes sobre a infância que receberam a mesma consagração. Estamos, assim, em presença de um conjunto complexo de filmes, que pode ser definido como um gênero, pois se debruça sobre assuntos específicos e sobre temáticas bastante semelhantes, apesar de realizados em distintos lugares geográficos. É um gênero que não apenas possui códigos implícitos, temáticas recorrentes, estilo próprio, mas também esquemas narrativos tão precisos quanto imutáveis e que transitam espantosamente de um filme para outro e de um país para outro - características que configuram as marcas de um gênero. Além disso, pela amplidão de seu universo, tem condições de instituir sub-gêneros: filmes de duos criança/adulto, sobre conflito, liberdade, o luto ou a perda, crianças e animais, a crueldade infantil, a amizade, a solidariedade e o amor, o medo, a delinqüência, a fuga, os maus-tratos, o espírito de grupo, as fronteiras, o maravilhoso, a passagem à idade adulta, as problemáticas sociais, a nostalgia e, em alguns casos, filmes difíceis de classificar. Na verdade, deparamo-nos com um vasto território ou um ciclo em que a imagem das crianças descritas nos envolve afetuosamente, ao longo de nossa vida, na crença de conhecê-lo definitivamente, mas com a intenção secreta de que tal ciclo nunca se encerre.
É necessário fazer uma distinção muito importante. Entendemos por "filme de infância" todo filme que tem como protagonista uma ou várias crianças, e não filmes que se dirigem às crianças. Consideramos uma única exceção: a dos filmes que colocam em cena duos formados por um adulto e uma criança ou um grupo de crianças. Nesse último caso, é a relação entre os integrantes do duo motriz que fará suscitar, ou desempenhará, o papel de personagem principal.
Por que falar em "filme de infância" e não de "filme sobre a infância"? Principalmente porque a infância, ao longo do tempo, passou do papel de simples sujeito, de temáticas de histórias, àquele de matéria-prima específica. Nessa perspectiva, a designação "filme sobre a infância" parece bem restritiva, face aos múltiplos matizes que configuram as intenções mais diversificadas percebidas nesses filmes.
Outro aspecto que importa precisar é que a infância presente no cinema diz respeito a crianças cujas idades vão de seis a onze ou doze anos, numa faixa com término, em tese, na pré-adolescência ou até mesmo na adolescência. Isso unicamente em tese. É difícil estabelecer um limite rigoroso, pois não há nada mais vaporoso ou impreciso do que a noção de "criança" no cinema. A infância no país-cinema é uma linha flutuante, como que marcada sobre a água.
Freqüentemente a idade é um pouco vaga, um pouco informal, mal situada. Veja-se o caso de colocar um ator mais idoso desempenhando um papel de alguém com uma idade menor, ou inversamente colocar uma criança que parece mais madura do que as outras para representar um papel de alguém com idade superior à sua.
Um dado paradoxal merece referência: a constatação de que são unicamente os adultos que escrevem histórias sobre crianças; o inverso não ocorre. No entanto, essas pessoas - esses intrusos - encontram-se na mais completa impossibilidade de vivenciar tudo aquilo que só as próprias crianças podem viver. É esse fato que instaura toda a fragilidade, mas também toda a beleza dos filmes de infância. O que faz com que esse tipo de filme alcance legitimidade decorre unicamente de sua qualidade final, e não da presença de seu sujeito específico, ou do simples fato de aquelas pessoas terem sido, elas mesmas, um dia, crianças.
Existe um vínculo imutável e invisível que une os seres humanos. Esse vínculo é um capital comum de emoções que jogam um papel muito claro na maioria das histórias que falam da infância. Possuímos uma paleta de emoções, com uma gama de cores e de matizes cuja definição e cujo domínio não nos pertencem. Do ponto de vista desse capital emocional que cada um de nós possui, não importa se nossas opiniões são ou não contraditórias. Uma declaração de amor na Antiguidade produz o mesmo efeito que dois mil anos mais tarde. A perda de um ente querido em 2006 tem o mesmo valor que a perda ocorrida em 1940. Estranhamente, todos nós somos levados a crer que as crianças de hoje são extremamente diferentes das crianças de ontem o que, de maneira nenhuma, impede que os adultos das duas gerações vivenciem, sem dúvida, cada qual a seu tempo, a mesma nostalgia ou a mesma repulsa. Ainda que os tempos mudem, as emoções perduram.
O cinema que filma crianças é, naturalmente, um cinema que vai se basear na emoção, porque utiliza, de maneira abundante, o recurso ao grande plano ou ao plano próximo. E não utiliza esse procedimento unicamente para dar importância aos atores e para colocá-los em pé de igualdade com os colegas adultos, mas para evitar toda a erotização do sujeito. Quando se filmam crianças, observa-se uma tendência em captar mais os rostos do que os corpos. É uma lógica adotada com muita freqüência e da qual resultam conseqüências diretas sobre o emocional.
Na maior parte do tempo, os filmes de infância revelam processos figurativos, narrativos e, freqüentemente, lineares. Suas histórias estruturam-se em torno de um fio condutor claramente estabelecido. Uma grande parte desses filmes prioriza a ficção, como E. T., de Spielberg, e Harry Potter e a pedra filosofal, de Chris Columbus. Existe, no entanto, uma outra categoria que transita de modo impreciso entre a ficção e o cinema real, na busca de outras infâncias, de outros possíveis, como Los olvidados, de Buñuel, e Fanny e Alexander, de Bergman. Uma categoria minoritária - apaixonante para alguns, limitada para outros - na qual se tenta, o mais possível, abandonar o terreno da narração, na busca de uma imagem diferente ou mais justa da infância.
Narrativas iniciáticas(1)
Um processo iniciático baseia-se numa relação exterior/interior, quer se trate do percurso de um personagem que entra no mundo dos homens (como se a criança não fizesse inteiramente parte dele ou nele devesse conquistar o seu lugar), quer se trate da descoberta de uma outra vertente, que seria um caminho iniciático direcionado para um melhor conhecimento de si, possibilitando encontrar uma entrada para o auto-conhecimento. Assim, a questão do rito de passagem, do abre-te sésamo, do ingresso está sempre presente. É problemático imaginar o personagem de uma narrativa iniciática perder algo na sua caminhada ou se desfazer, pouco a pouco, de si próprio. Os heróis das narrativas iniciáticas ganham ingresso no mundo ou em si mesmos? Qual o sentido de seu caminho? É necessário lembrar que as histórias de infância se apóiam, majoritariamente, no período de latência (6-12 anos) no qual o indivíduo se desinveste do corpo(2). A narrativa iniciática torna-se, então, um regresso a si mesmo. É interessante notar que a maioria delas possui uma estrutura um pouco circular, com um retorno ao ponto de partida, como um bumerangue.
A narrativa iniciática representa a etapa mais relevante da formação de um indivíduo, em toda a sua existência. Essa etapa é da maior importância para o menino Josué, um dos protagonistas do filme Central do Brasil, que
é o típico road movie, obra simultaneamente simples e fantástica que procura relatar uma saga dos excluídos. É um filme sobre o retorno ao lar, sobre o afeto, sobre a descoberta do afeto, sobre o amor, o desejo, a memória, o esquecimento [...]. É também e, fundamentalmente, um filme sobre a recuperação da identidade, a descoberta da origem(3).
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A construção da identidade, a busca do pai, está também presente nas cinematografias de princípios dos anos 80, como observa Quintana:
A queda do Muro de Berlim, a decomposição do comunismo, a crise dos grandes relatos utópicos converteram a questão da crise de identidade em um dos temas mais centrais do cinema contemporâneo. Em um mundo à deriva, a busca do pai convertia-se em metáfora da necessidade de consolidar um novo horizonte de crenças. Dez anos depois, o cinema que surgiu no novo milênio tem transformado sua busca e convertido o tema da necessidade do encontro do filho em uma questão vital(4).
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Esta questão é visível em inúmeros filmes. Veja-se, entre outros, a obra Billie Eliot, que aborda o abandono da infância ainda sem as referências - mesmo precárias - da adolescência.
Trata-se de um menino de 11 anos diante de si mesmo e contra as hostilidades do mundo em sua volta, experiencia das naquilo que o define como sujeito: o próprio corpo. A busca de uma identidade que lhe dê sentido pessoal, como também o distinga da massa informe de homens. Ao mesmo tempo, a identidade do menino, gênero que impõe a incorporação de determinados papéis e performances sociais(5).
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Mas será que essa etapa representa sempre uma narrativa de aprendizagem? Algumas vezes o protagonista aprende alguma coisa e, em outras, ele apenas transpõe uma etapa. Trata-se da simples passagem de um a outro momento de sua vida ou da constituição mais formal de um indivíduo.
A narrativa iniciática é, portanto, cada vez mais, a história das crianças no exílio. Exílio de um casulo inicial ou simplesmente delas próprias. Elas poderiam todas se chamar Ulisses, mas prefere-se chamá-las alternadamente Ana, Pinochio, Paulette ou Josué. Todas têm uma viagem a realizar. Por vezes, apenas geográfica, mas freqüentemente, temporal e psicológica. Sua odisséia necessita de numerosos esforços: dificuldades a ultrapassar, fuga de si mesmo, exploração, superação etc. Elas estão diante de um momento fundamental que as forçará a abandonar o imobilismo, deixando talvez a infância, ou parte dela, para se confrontarem com o mundo que as rodeia, através de uma perturbação interna que vai modificar os próprios fundamentos da sua frágil identidade. Mudar de território em si mesmo é, sem dúvida, uma das questões mais inéditas e arriscadas.
A idéia de infância se apresenta, freqüentemente, como uma complexa miscelânea de território e espaço temporal a percorrer. Crescer é, mais do que tudo, caminhar, descobrir, ocupar um território, passar de um lugar a outro, ultrapassar etapas. Não é, pois, de surpreender que as narrativas iniciáticas fracionem todas as suas histórias em episódios. Uma vez expostas, existe sempre a noção de uma linha de partida e de um ponto de chegada.
A narrativa iniciática é a versão infantil do road movie adulto. Há divergências apenas na escolha das geografias e nas vias de acesso. Se, para os adultos, é comum a rodovia asfaltada, para as crianças são radicalmente diferentes os meios de transporte e as vias de acesso. Para elas é freqüente a utilização do trem ou da própria via férrea, o rio ou o caminho através da floresta.
A infância no cinema dominante
Outro aspecto distintivo da cultura infantil(6) na sociedade contemporânea, que Kincheloe(7) apresenta e problematiza, é o de ela ser feita por adultos (empregados de corporações que visam ao lucro) e direcionada às crianças, enquanto, no passado, a cultura era propagada de criança para criança. Acrescente-se a isso a existência - anteriormente referida - de uma relação muito próxima entre Estado e corporações empresariais, o que acaba conduzindo à idéia de um imaginário culturalmente produzido, como assinala Quintana:
Atualmente, em um mundo ocidental marcado pelos desajustes de riqueza, as crianças têm de aprender a crescer em uma selva urbana na qual nada, nem ninguém, parece se preocupar com o mundo que vão acabar herdando, nem com a criação de utopias que permitam desenhar alguma esperança de futuro. Os tiroteios transformam-se em silêncio no cinema de John Woo para certificar a raiz desta crise vital, enquanto o cinema contemporâneo não cessa de construir uma série de fábulas estimulantes sobre o esquecimento da infância(8).
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Os Estados Unidos são um caso à parte. Sua indústria cinematográfica coloca muitas crianças nas telas, mas movida apenas pela obsessão de atrair o maior número de pessoas às salas de cinema. Salvo raríssimas exceções, é o valor consensual da criança que é, então, utilizado. O filme destinado às crianças torna-se um bom pretexto para vender uma infinidade de produtos derivados, além de tender a uniformizar o gosto das crianças de todo o mundo "nota_josedesouza.html" target="_blank">(9). No entendimento de Sarmento:
As personagens do Senhor dos anéis, Harry Potter e as suas aventuras, os soldados dos jogos da Mattel ou dos Game-Boys, Barbie, Pokemon e os animais personificados da Eurodisney, do Disneyworld e da Warner Brothers, associam-se a tantas outras personagens fictícias (e algumas reais, transformadas em ícones comerciais, como Beckham, Ronaldinho ou Figo) que contribuem para a configuração do universo de conhecimento e de interações cotidianas de crianças (mas não apenas crianças) de todo o mundo(10).
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A noção de espectador se confunde com a de consumidor. Um fato evidente é o recurso permanente dos americanos ao maravilhoso sempre que se trate de personagens infantis. Ocorre uma infantilização coletiva da infância e do imaginário, processo no qual a realidade é rapidamente descartada.
Ainda de acordo com Sarmento:
Ainda de acordo com Sarmento:
A colonização do imaginário infantil pelo mercado é um dado da sociedade contemporânea que não se pode ignorar. Mas, do mesmo modo, não se pode também ignorar a resistência a essa colonização, através das interpretações singulares, criativas e freqüentemente críticas que as crianças fazem desses personagens, reinvestindo essas interpretações nos seus cotidianos, nos seus jogos e brincadeiras e nas suas interações com os outros. Afinal todas as colonizações são imperfeitas(11).
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Giroux(12) indica que "a Disney constrói um mundo inteiramente compatível com o consumismo"(13) na medida em que "fornece a imagem em que a América [os Estados Unidos] constrói-se"(14). Assim, os filmes da Disney, ao incorporarem princípios norteadores dessa sociedade, acabam por ensiná-los.
Um dos exemplos fornecidos é o da personagem Ariel do filme A pequena sereia, que representa a metáfora da dona de casa tradicional, ao afirmar, dentre outras coisas, que ficar sem voz não é totalmente ruim, pois os homens não gostam de mulheres que falam(15).
Outro exemplo é o filme O rei leão, em que todos os personagens com poder, independência e senso de liderança são machos. Os exemplos fornecidos por Giroux são variados, mas mostram a repetição do tema, levando à conclusão de que "todas as mulheres nesses filmes são definitivamente subordinadas aos homens e definem seu senso de poder e desejo quase exclusivamente em termos de narrativas do macho dominante"(16).
O estereótipo racial também é abordado na análise dos filmes da Disney, em que os americanos nativos são descritos como violentos "peles-vermelhas" e os árabes, retratados no filme Aladim, aparecem como grotescos, violentos e cruéis.
O preconceito, finamente mascarado, mostra-nos Giroux(17), aparece também nas vozes dos personagens. Em O rei leão os membros da família real falam com sotaque britânico, enquanto as duas desprezíveis hienas falam com um sotaque urbano de um jovem negro e de um latino. Situação semelhante ocorre em Aladim.
Uma série de filmes americanos, do tipo Esqueceram de mim, em essência, falam de uma sociedade em que as crianças se vêem assustadoramente sozinhas em casa, pois seus pais, dada a recessão econômica, são obrigados a longas jornadas de trabalho. Mais ainda, revelam uma sociedade em que crianças vivem em lares cada vez mais fragmentados, haja vista o crescente número de divórcios, acarretando uma alta porcentagem de pais e mães que se vêem obrigados a cuidar sozinhos de seus filhos. Além disso, trata-se de uma sociedade na qual, pela ausência de uma rede comunitária de apoio à educação das crianças, estas acabam passando inúmeras horas assistindo à televisão. Nesse sentido constata-se a existência de uma geração de esquecidos em casa, obrigados a crescerem, em grande parte, por si mesmos.
Indo mais adiante, o enredo da série Esqueceram de mim se refere também ao tema da criança indesejada por sua família. A criança esquecida em casa é tratada com desdém e crueldade nas primeiras cenas. Um dos exemplos pode ser visto no segundo filme, na cena em que o pequeno herói faz uma aliança com uma sem-teto, depois de ambos terem sido rejeitados. "Ambos aprendem a lidar com seu status cultural"(18).
Os exemplos não se esgotam na análise da série, contemplando filmes de terror e até mesmo o inocente Parque dos dinossauros. Dado o contexto atual, produtor de um novo tipo de infância, Kincheloe levanta algumas das razões que tornam inviável que adultos lidem com crianças do presente com o mesmo tipo de autoridade que ganhava seu sentido e sua lógica a partir de demarcações de um contexto que já se tornou uma dimensão do passado.
Estamos, assim, diante da existência naturalizada de um novo tipo de infância que a cultura midiática produz e é muito diferente da até então conhecida. Essa perspectiva constitui um instrumento de crítica às teorias e às práticas psicológicas e educacionais que ainda operam com a concepção tradicional de infância e recusam-se a reconhecer as mudanças já ocorridas. Ao mesmo tempo, constitui também uma rica ferramenta a servir de norte para futuras análises da dinâmica relacional travada entre crianças e adultos, no contexto da pós-modernidade.
Contudo, outras cinematografias procuram novos caminhos, mais reflexivos no trato da infância. Como afirma Quintana,
Contudo, outras cinematografias procuram novos caminhos, mais reflexivos no trato da infância. Como afirma Quintana,
...a infância não é só um problema que surge como espaço central em determinados filmes articulados desde uma clara consciência social ou desde uma determinada busca de valores humanitários, senão que chegou a atravessar os registros mais diversos do cinema contemporâneo, até o ponto de converter-se em um fator alegórico(19).
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A infância em outras cinematografias
Os filmes sobre a infância produzidos em outras cinematografias se afastam completamente da tendência hollywoodiana. Nem efeitos especiais nem vitrines sedutoras, em que tudo é atraente e "abracadabramente" maravilhoso. Nada de crianças que voam sobre bicicletas à luz da lua nem de garotos sorridentes que cantam a "velha" comédia musical hollywoodiana. Ao contrário, ocorre uma nostalgia idealista das coisas, um realismo mais brutal ou uma combinação de ambos. Em suma, o que se nota é certa contenção, combinando moderação e respeito pelo olhar de cada espectador; certas exigências que talvez estejam se perdendo, nos últimos anos, em benefício de filmes cada vez mais consensuais.
Por que de repente uma série de cineastas de culturas diferentes e concepções divergentes do cinema convenceram-se da necessidade de converter a infância em uma metáfora capital do cinema contemporâneo? Ainda que seja difícil achar uma clara e definitiva resposta para a questão, tudo parece indicar que o cinema não faz mais do que refletir as múltiplas contradições geradas em meio ao desgaste relativo à geração. Em um mundo ocidental deslocado, em crise perpétua de identidade, marcado pelos excessos da abundância e no qual a inocência tem estado continuamente pervertida, as crianças se converteram nos grandes esquecidos e sua existência se transformou no vetor que impulsiona a recuperação de certa consciência de futuro. As crianças estão desatendidas porque os adultos estão obcecados em viver ao limite seu presente e estão despreocupados em criar um legado coerente. Ante esta crise, o cinema não tem feito mais do que começar a se perguntar como salvar as crianças, idealizando uma curiosa cruzada imaginária com os recursos próprios da ficção(20).
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É a esses questionamentos de Quintana que outras cinematografias têm procurado dar respostas. Se, por exemplo, analisarmos a história do cinema, mais especificamente a relativa aos filmes da infância, é fácil constatar que estamos diante de um gênero francês por excelência. Existe, na França, uma forte tradição de diretores de infância e adolescência: François Truffaut, Louis Malle, Jacques Doillon, Claude Miller, Yves Robert fizeram, cada um, pelo menos três filmes sobre a infância e são considerados especialistas no gênero. Seus filmes são um marco na história cinematográfica. Outros diretores, como Maurice Pialat, Jean-Claude Brisseau e Nicolas Philibert, produziram obras bastante significativas sobre o universo infantil.
Mas a França não é o único país que privilegia a infância nos seus filmes. O Irã (sobretudo Abbas Kiarostami e Majid Mjidid), a Espanha (Carlos Saura e José Luís Cuerda) a República Tcheca, a Eslováquia, a Itália (principalmente Luigi Comencini), a China, a Grécia, o Japão (Takeshi Kitano, Shinji Aoyama, Kore-Eda Hirokazu) e a Rússia, dentre outros países, produzem filmes virados para esta temática. O mesmo se pode dizer da província do Québec, no Canadá, que tem produzido um número significativo de filmes sobre a infância.
Vejamos o caso surpreendente do cinema de infância iraniano que, em última análise, apresenta-nos uma proposta bastante inovadora contra a banalidade cinematográfica. No cinema iraniano sobre a infância, somos confrontados com um estilo amplamente autobiográfico, através de escolhas assumidas por cineastas que retratam precisamente o fascínio da temática da infância. Tal fascínio determina, igualmente, um ascetismo estético, que exclui qualquer recurso simplista ou patético. Certas cenas são realmente fulgurantes e procuram um sentimento de estranheza sem nenhum artifício. A construção desses filmes opera sobre um variado leque de sensações, através de uma acumulação de pequenas histórias reveladoras da energia e da vontade de descoberta próprias da infância. As referências desses cineastas são freqüentemente próximas de Fellini e de Truffaut e, portanto, acabam nos remetendo à descoberta de projetos espantosamente originais. A originalidade do jovem cinema iraniano revela-se no lugar central ocupado, precisamente, pela infância e pela aprendizagem. Filmes recentes como O pai, de Majid Majidi, e, sobretudo, Don e La danse de la poussière, de Abolfazi Jalili, Leopardo de Prata em Locarno, confirmam essa tendência. O mesmo se pode dizer em relação a Filhos do paraíso, de Majid Majidi. Para Linhares,
é neste universo que se pode entender a magnitude do "Filhos do Paraíso", que, avançando como uma crítica social e como um apelo a fabricar um outro futuro, privilegia as perspectivas das crianças, investindo, com suavidade e firmeza, na ida à escola como uma trajetória entrelaçada com a problemática social. É a maneira de Majid Majidi denunciar os conformismos culturais que aferrolham esperanças, como uma forma de convocar-nos a dar-nos as mãos às meninas e aos meninos de nosso tempo, para encorajá-los a falar, a pronunciar as palavras formuladoras dos seus problemas e dos seus medos(21).
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No filme A maçã, de Samira Maklmalbaf, baseado em fatos reais, é retratada a história de duas meninas que viveram presas em casa durante onze de seus treze anos de idade. A forte influência dos preceitos do Alcorão e, principalmente, a interpretação radical de seus ensinamentos são um fator marcante nessa obra. Além do aspecto cultural, muito presente, é possível perceber também as diferenças de produções, numa comparação com a estética hollywodiana. Nessa obra, algumas cenas entram na seqüência de imagens como se fossem fotografias, como se algumas partes do filme fossem compostas de cenas reais. Isso dá um ar de documentário à produção, pois, além de a narrativa referir-se a uma seqüência de acontecimentos reais, o filme conta com a atuação das próprias protagonistas dos fatos reias, Zahra e Massoumeh.
Na linha dos primeiros filmes de Abbas Kiarostami, especialmente Onde é a casa de meu amigo?, os filmes dos diretores iranianos exigem uma dupla leitura: por um lado, a do mundo da infância próxima do real, impregnada de uma expressão natural e de uma simplicidade aparentemente muito didática e até mesmo moral; por outro lado, a de uma metáfora sutil das contradições da sociedade iraniana. Nesses filmes, encontramos, como motor da ficção, a perda de um objeto e a busca de uma liberdade que se perdeu. Como salienta Oubiña(22), "...o cinema permite recuperar é a liberdade amoral da infância. Ou seja, a infância considerada em toda sua potência subversiva ou contestatória, como um momento pré-social, completamente alheio aos códigos e às convenções".
Considerações finais
Vale lembrar um aspecto curioso em relação ao cinema de infância, que diz respeito ao fenômeno de identificação do espectador com um personagem do filme. Com efeito, identificar-se com um personagem infantil não é a mesma coisa que identificar-se com um personagem adulto, porque, estranhamente, a identificação não se faz em relação ao personagem e à sua identidade, mas sim em relação à sua infância e à uma identidade ainda imprecisa. Ninguém se identifica com um personagem adulto pelo fato de ele ser adulto. Essa é uma diferença significativa. Isso faz com que, nos filmes de infância, sem que muitas vezes nos demos conta disso, não ocorra um distanciamento entre nós e o sujeito. Ou seja, acontece uma identificação imediata com a infância, desde o primeiro momento, mais do que com a personagem que a encarna. A empatia é muito direta. Trata-se de uma especificidade que é válida tanto para o autor quanto para o espectador.
O cinema de infância, apesar de numerosos sucessos, não escapa nem à mediocridade, nem à falta de talento, nem a uma forte proliferação de lugares-comuns. A fronteira entre tema e lugar-comum pode revelar-se, por vezes, pouco clara. Não é pelo fato de ser um território íntimo que a infância deva ser considerada um território sagrado. Por vezes, os filmes da infância são alvo de críticas violentas, como aconteceu, por exemplo, na França, com os primeiros filmes de Luigi Comencini.
Se o cinema de infância se presta ao debate, é também inegável que seja um espaço cinematográfico de uma variedade impressionante, sobre o qual se pode colocar uma multiplicidade de olhares.
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