quarta-feira, 19 de outubro de 2022

"Grandes são os desertos, e tudo é deserto" - Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)


 



Grandes são os desertos, e tudo é deserto



Grandes são os desertos, e tudo é deserto.


Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto


Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo.


Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes —


Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas,


Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu.



Grandes são os desertos, minha alma!


Grandes são os desertos.



Não tirei bilhete para a vida,


Errei a porta do sentimento,


Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse.


Hoje não me resta, em vésperas de viagem,


Com a mala aberta esperando a arrumação adiada,


Sentado na cadeira em companhia com as camisas que não cabem,


Hoje não me resta (à parte o incómodo de estar assim sentado)


Senão saber isto:


Grandes são os desertos, e tudo é deserto.


Grande é a vida, e não vale a pena haver vida.


Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar


Que com arrumação das mãos factícias (e creio que digo bem).


Acendo o cigarro para adiar a viagem,


Para adiar todas as viagens.


Para adiar o universo inteiro.



Volta amanhã, realidade!


Basta por hoje, gentes!


Adia-te, presente absoluto!


Mais vale não ser que ser assim.



Comprem chocolates à criança a quem sucedi por erro.


E tirem a tabuleta porque amanhã é infinito.



Mas tenho que arrumar a mala,


Tenho por força que arrumar a mala,


A mala.


Não posso levar as camisas na hipótese e a mala na razão.


Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala.


Mas também, toda a vida, tenho ficado sentado sobre o canto das camisas empilhadas,


A ruminar, como um boi que não chegou a Ápis, destino.



Tenho que arrumar a mala de ser.


Tenho que existir a arrumar malas.


A cinza do cigarro cai sobre a camisa de cima do monte.


Olho para o lado, verifico que estou a dormir.


Sei só que tenho que arrumar a mala,


E que os desertos são grandes e tudo é deserto,


E qualquer parábola a respeito disto, mas dessa é que já me esqueci.



Ergo-me de repente todos os Césares.


Vou definitivamente arrumar a mala.


Arre, hei de arrumá-la e fechá-la;


Hei de vê-la levar de aqui,


Hei de existir independentemente dela.



Grandes são os desertos e tudo é deserto,


Salvo erro, naturalmente.


Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado!


Mais vale arrumar a mala.


Fim.


Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)



Para ler o Prefácio da 2ª edição do livro CULTURA ACÚSTICA E LETRAMENTO EM MOÇAMBIQUE: Em busca de fundamentos antropológicos para uma educação intercultural” do autor do blog clique aqui


Para adquirir o livro, sob demandaclique aqui


0 comentários:

  © Blogger template 'Solitude' by Ourblogtemplates.com 2008

Back to TOP