sexta-feira, 21 de outubro de 2022

Marcia Tiburi: Precisamos conversar sobre lavagem cerebral

 





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Em entrevista a podcast, Bolsonaro relacionou adolescentes venezuelanas a exploração sexual


Jamil Chade - Carta para as meninas venezuelanas: bem-vindas ao Brasil


Prezadas meninas,


Vocês fugiram da opressão, da destruição dos sonhos, da fome e da violência, apenas para descobrirem que, do outro lado da fronteira, não existia uma Operação Acolhida. Mas sim uma Operação Humilhação.


Vocês estão cruzando as divisas em nosso continente no mesmo momento em que cruzam a fronteira entre a infância e a adolescência. E desembarcam em um mundo adulto marcado pelo ódio e pela mentira.


Indignação é o que prevalece em parte da sociedade brasileira diante dos comentários do chefe de estado que confundiu vocês com prostitutas. Um líder que, diante de uma cena que interpretou como crime, não acionou os mecanismos existentes na lei para sair à proteção das vítimas e de menores.


Ou, então, que simplesmente mentiu, um de seus dois principais hábitos. O outro é o de cometer crimes contra a democracia.


O mais dramático é que, de fato, vocês estão sozinhas e manipuladas por diferentes grupos. Todos eles usando o sofrimento de vocês para fins políticos.


Diante das frases de Jair Bolsonaro sobre vocês, falei com um dos principais ministros do governo de Nicolas Maduro. Queria saber se Caracas não iria reagir, diante da humilhação que vocês sofreram. Mas, numa troca de mensagens informais por telefone com esse ministro, ele explicou que, por motivos políticos, iriam "ignorar" Bolsonaro.


E a humilhação que vocês sofreram? Bom, apenas um efeito colateral.


Meninas, vocês estão sozinhas.


Falei também de maneira informal com uma das principais vozes no exílio da oposição "democrática" venezuelana, que conversava comigo de seu luxuoso apartamento em Madri. Quando perguntei se ele gostaria de comentar a barbaridade cometida pelo presidente brasileiro, a resposta foi negativa: a oposição venezuelana não quer criar atritos com Bolsonaro, um dos poucos governos que ainda reconhece o autoproclamado presidente Guaidó.


Quando eu o confrontei com o fato de Bolsonaro ter um perfil autoritário e ter adotado uma estratégia para desmontar a democracia, sua resposta foi tão cínica quanto clara. "Esse não é nosso problema", justificou.


Eu decidi insistir e ver até onde iria a conversa —e o cinismo desse "democrata". Quando eu perguntei que moral eles teriam em denunciar Maduro por atacar a imprensa e silenciar diante dos ataques de Bolsonaro contra os jornalistas, ele foi ainda mais explícito: "a questão é que ele está ao nosso lado. É o nosso líder autoritário".


Meninas, vocês estão sozinhas.


Num recente documento sigiloso da ONU, relatores desmontam a tese de que o Brasil é um país acolhedor aos estrangeiros. Para meus filhos brancos e privilegiados, pão de queijo, piscina e festa cada vez que desembarcam no país. Para vocês, bolivianas, haitianas, congolesas, nigerianas ou angolanas, o que lhes aguarda é a xenofobia e o racismo.


O constrangimento que vocês atravessaram nestes últimos dias no Brasil é um reflexo de um governo desumano, que usa a mentira como estratégia de poder. Que manipula os sentimentos, sem escrúpulos. Uma administração que resgata um outro significado para o termo corrupção: a dilaceração e decomposição do coração.


A corrupção, como diz o papa Francisco, que dissolve as relações e os pilares sobre os quais se fundam uma sociedade: a coexistência entre as pessoas. O "coração partido e fragmentado, manchado por alguma coisa", "estragado" como um corpo decomposto.


Como num conto improvável do realismo mágico latino-americano, vocês deram o azar de fugir da repressão e se deparar com um país que vive uma encruzilhada civilizatória.


Nesta busca de vocês por um porto seguro, a violência da mentira dá as mãos às ameaças que, por viverem em um corpo de mulher, vocês são obrigadas a enfrentar diariamente. Da pior maneira possível, vocês descobriram que a segurança não é apenas uma questão geográfica e nem ideológica.


São estrangeiras pela simples condição feminina.


De uma forma mais ampla - e num contexto marcado pelo ódio, discriminação e injustiça —a fronteira que define o estrangeiro não está desenhada no chão, nem conta com agentes da aduana local.


A linha não é imaginária. Mas profundamente real na ausência de dignidade ou na recusa de direitos. No desrespeito pela diversidade e na recusa em aceitar uma nação múltipla em sua identidade.


Bem-vindas ao Brasil de Bolsonaro, onde milhões são estrangeiros.


Jamil Chade


Fonte: UOL (21/10/2022)


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