Marcia Tiburi: Precisamos conversar sobre lavagem cerebral
Em
entrevista a podcast, Bolsonaro relacionou adolescentes venezuelanas a exploração
sexual
Jamil Chade - Carta para as meninas venezuelanas: bem-vindas ao Brasil
Prezadas
meninas,
Vocês
fugiram da opressão, da destruição dos sonhos, da fome e da violência, apenas
para descobrirem que, do outro lado da fronteira, não existia uma Operação
Acolhida. Mas sim uma Operação Humilhação.
Vocês
estão cruzando as divisas em nosso continente no mesmo momento em que cruzam a
fronteira entre a infância e a adolescência. E desembarcam em um mundo adulto
marcado pelo ódio e pela mentira.
Indignação
é o que prevalece em parte da sociedade brasileira diante dos comentários do
chefe de estado que confundiu vocês com prostitutas. Um líder que, diante de
uma cena que interpretou como crime, não acionou os mecanismos existentes na
lei para sair à proteção das vítimas e de menores.
Ou,
então, que simplesmente mentiu, um de seus dois principais hábitos. O outro é o
de cometer crimes contra a democracia.
O
mais dramático é que, de fato, vocês estão sozinhas e manipuladas por
diferentes grupos. Todos eles usando o sofrimento de vocês para fins políticos.
Diante
das frases de Jair Bolsonaro sobre vocês, falei com um
dos principais ministros do governo de Nicolas Maduro. Queria saber se Caracas
não iria reagir, diante da humilhação que vocês sofreram. Mas, numa troca de
mensagens informais por telefone com esse ministro, ele explicou que, por
motivos políticos, iriam "ignorar" Bolsonaro.
E
a humilhação que vocês sofreram? Bom, apenas um efeito colateral.
Meninas,
vocês estão sozinhas.
Falei
também de maneira informal com uma das principais vozes no exílio da oposição
"democrática" venezuelana, que conversava comigo de seu luxuoso
apartamento em Madri. Quando perguntei se ele gostaria de comentar a
barbaridade cometida pelo presidente brasileiro, a resposta foi negativa: a
oposição venezuelana não quer criar atritos com Bolsonaro, um dos poucos
governos que ainda reconhece o autoproclamado presidente Guaidó.
Quando
eu o confrontei com o fato de Bolsonaro ter um perfil autoritário e ter adotado
uma estratégia para desmontar a democracia, sua resposta foi tão cínica quanto
clara. "Esse não é nosso problema", justificou.
Eu
decidi insistir e ver até onde iria a conversa —e o cinismo desse
"democrata". Quando eu perguntei que moral eles teriam em denunciar
Maduro por atacar a imprensa e silenciar diante dos ataques de Bolsonaro contra
os jornalistas, ele foi ainda mais explícito: "a questão é que ele está ao
nosso lado. É o nosso líder autoritário".
Meninas,
vocês estão sozinhas.
Num
recente documento sigiloso da ONU, relatores desmontam a tese de que o Brasil é
um país acolhedor aos estrangeiros. Para meus filhos brancos e privilegiados, pão de queijo, piscina e festa cada vez que
desembarcam no país. Para vocês, bolivianas, haitianas, congolesas, nigerianas
ou angolanas, o que lhes aguarda é a xenofobia e o racismo.
O
constrangimento que vocês atravessaram nestes últimos dias no Brasil é um
reflexo de um governo desumano, que usa a mentira como estratégia de poder. Que
manipula os sentimentos, sem escrúpulos. Uma administração que resgata um outro
significado para o termo corrupção: a dilaceração e decomposição do coração.
A
corrupção, como diz o papa Francisco, que dissolve as relações e os pilares
sobre os quais se fundam uma sociedade: a coexistência entre as pessoas. O
"coração partido e fragmentado, manchado por alguma coisa",
"estragado" como um corpo decomposto.
Como
num conto improvável do realismo mágico latino-americano, vocês deram o azar de
fugir da repressão e se deparar com um país que vive uma encruzilhada
civilizatória.
Nesta
busca de vocês por um porto seguro, a violência da mentira dá as mãos às
ameaças que, por viverem em um corpo de mulher, vocês são obrigadas a enfrentar
diariamente. Da pior maneira possível, vocês descobriram que a segurança não é
apenas uma questão geográfica e nem ideológica.
São
estrangeiras pela simples condição feminina.
De
uma forma mais ampla - e num contexto marcado pelo ódio, discriminação e
injustiça —a fronteira que define o estrangeiro não está desenhada no chão, nem
conta com agentes da aduana local.
A
linha não é imaginária. Mas profundamente real na ausência de dignidade ou na
recusa de direitos. No desrespeito pela diversidade e na recusa em aceitar uma
nação múltipla em sua identidade.
Bem-vindas
ao Brasil de Bolsonaro, onde milhões são estrangeiros.
Jamil
Chade
Fonte:
UOL (21/10/2022)
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