segunda-feira, 3 de outubro de 2022

"Epitáfio para o Século XX" - Affonso Romano de Sant'Anna






Epitáfio para o Século XX

 

 

 



1

 

Aqui jaz um século


onde houve duas ou três guerras


mundiais, e milhares


de outras pequenas,


e igualmente bestiais.


 

2


 

Aqui jaz um século


onde se acreditou,


que estar à esquerda


ou à direita,


eram questões centrais.


 


3

 


Aqui jaz um século,


que quase se esvaiu


na nuvem atómica.


Salvaram-no o acaso


e os pacifistas,


com sua homeopática


atitude


-nux-vómica.


 


4

 


Aqui jaz um século


que um muro dividiu.


Um século de betão


armado, canceroso,


drogado, empestado,


que enfim sobreviveu


às bactérias que pariu.


 


5

 


Aqui jaz um século


que se abismou


com as estrelas


nas telas,


e que o suicídio


de supernovas


contemplou.


Um século filmado,


que o vento levou.


 


6

 


Aqui jaz um século


semiótico e despótico,


que se pensou dialético


e foi patético e aidético.


Um século que decretou


a morte de Deus,


a morte da história,


a morte do homem,


em que se pisou na Lua


e se morreu de fome.


 


7

 


Aqui jaz um século


que opondo classe a classe


quase se desclassificou.


Século cheio de anátemas


e antenas, sibérias e gestapos


e ideologias safenas;


século tecnicolor,


que tudo transplantou


e o branco, do negro,


a custo aproximou.


 


8

 


Aqui jaz um século


que se deitou no divã.


Século narciso e esquizo,


que não pode computar os


seus neologismos.


Século vanguardista,


marxista, guerrilheiro,


terrorista, freudiano,


proustiano, joyciano,


borges-kafkiano.


Século de utopias e hippies


que caberiam num chip.


 


9

 


Aqui jaz um século


que se chamou moderno,


e olhando presunçoso,


o passado e o futuro


julgou-se eterno;


século que de si


fez alarde


e, no entanto


- já vai tarde.


 


10

 


Foi duro atravessá-lo.


Muitas vezes morri, outras


quis regressar ao 18


ou 16, pular ao 21,


sair daqui


para o lugar nenhum.


 


11

 


Tende piedade de nós, ó vós


que em outros tempos nos julgais


da confortável galáxia


em que irónico estais.


Tende piedade de nós


-modernos medievais-


tende piedade como Villon


e Brecht por minha voz


de novo imploram. Piedade


dos que viveram neste século


per seculae seculorum.

 

 




Affonso Romano de Sant'Anna


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