"Epitáfio para o Século XX" - Affonso Romano de Sant'Anna
Epitáfio para o Século XX
1
Aqui jaz um século
onde houve duas ou três guerras
mundiais, e milhares
de outras pequenas,
e igualmente bestiais.
2
Aqui jaz um século
onde se acreditou,
que estar à esquerda
ou à direita,
eram questões centrais.
3
Aqui jaz um século,
que quase se esvaiu
na nuvem atómica.
Salvaram-no o acaso
e os pacifistas,
com sua homeopática
atitude
-nux-vómica.
4
Aqui jaz um século
que um muro dividiu.
Um século de betão
armado, canceroso,
drogado, empestado,
que enfim sobreviveu
às bactérias que pariu.
5
Aqui jaz um século
que se abismou
com as estrelas
nas telas,
e que o suicídio
de supernovas
contemplou.
Um século filmado,
que o vento levou.
6
Aqui jaz um século
semiótico e despótico,
que se pensou dialético
e foi patético e aidético.
Um século que decretou
a morte de Deus,
a morte da história,
a morte do homem,
em que se pisou na Lua
e se morreu de fome.
7
Aqui jaz um século
que opondo classe a classe
quase se desclassificou.
Século cheio de anátemas
e antenas, sibérias e gestapos
e ideologias safenas;
século tecnicolor,
que tudo transplantou
e o branco, do negro,
a custo aproximou.
8
Aqui jaz um século
que se deitou no divã.
Século narciso e esquizo,
que não pode computar os
seus neologismos.
Século vanguardista,
marxista, guerrilheiro,
terrorista, freudiano,
proustiano, joyciano,
borges-kafkiano.
Século de utopias e hippies
que caberiam num chip.
9
Aqui jaz um século
que se chamou moderno,
e olhando presunçoso,
o passado e o futuro
julgou-se eterno;
século que de si
fez alarde
e, no entanto
- já vai tarde.
10
Foi duro atravessá-lo.
Muitas vezes morri, outras
quis regressar ao 18
ou 16, pular ao 21,
sair daqui
para o lugar nenhum.
11
Tende piedade de nós, ó vós
que em outros tempos nos julgais
da confortável galáxia
em que irónico estais.
Tende piedade de nós
-modernos medievais-
tende piedade como Villon
e Brecht por minha voz
de novo imploram. Piedade
dos que viveram neste século
— per seculae seculorum.
Affonso Romano de Sant'Anna
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