Sobre o narcisismo de todos, e a escrita de Ernaux que talvez nos salve
Senhoras
e senhores do Comitê do Prêmio Nobel,
Vocês
acabam de concluir mais uma semana de reconhecimento da genialidade do ser
humano. Como faço a cada ano desde 2001, acompanho, leio e aplaudo cada um dos
ganhadores. Um prêmio que sigo com especial atenção: o de literatura, concedido
pela Academia Sueca. Talvez uma espécie de termômetro do nosso tempo. A
tradução de nossas utopias, amores e angústias.
Quando
não conheço o escolhido, me apresso em ler algo daquele autor ou autora. Sim,
sou daqueles que contribuem para a venda de livros do premiado.
Neste
ano, a escolha que vocês fizeram foi celebrada e, sem dúvida, Anne Erneaux
merece a distinção.
Mas a
cada ano, eu me pergunto: onde foi parar aquele conceito de que a literatura é
universal? Será que os que pensam e escrevem em inglês, francês ou alemão são
superiores aos demais cérebros?
Olho
para meus filhos em casa e descubro, em Genebra, que os idiomas não são prisões.
Ou pelo menos não precisam ser. O mais velho decora os nomes dos planetas em
inglês, pedala sua bicicleta em francês, me pede arroz com feijão em português e briga com o
irmão menor em espanhol. E não parece existir um dilema interno em nenhum dos
dois sobre suas identidades.
Escrevo
essa carta a vocês para pedir que tampouco aceitem essa prisão do idioma ao
reconhecer a arte.
Nas
primeiras três décadas da existência do prêmio, todos os vencedores foram
europeus. Se somarmos todos os homenageados desde 1901, quinze eram franceses,
dez americanos e dez ingleses. A lista das nacionalidades mais geniais na
literatura ainda inclui oito prêmios para os alemães, oito para os suecos, seis
aos italianos e seis aos espanhóis.
Só essas
poucas nacionalidades concentram mais da metade de todos os prêmios já
distribuídos.
Mas eu
insisto: se o Nobel se pretende universal, existiria uma fronteira para esse
conceito?
Yeats,
que ganhou o prêmio em 1923 e que faz parte das minhas referências, certamente
estaria em qualquer lista dos escritores "universais". Mas Guimarães
Rosa não? Hermann Hesse, que venceu o prêmio em 1946, Russell em 1950 ou
Hemingway em 1954, também entrariam em qualquer compilação de escritores que me
inspiram.
Mas até
que ponto o conceito de "universal" é de fato universal na escolha
das senhores e senhores?
Onde
estão, nesse universalismo, as vozes não-brancas, as vozes marginalizadas, as
vozes distantes, as vozes que não são escutadas?
De que
vale incluir nesse conceito "universal" os relatos dos crimes do
colonialismo e da opressão se a narração quase sempre não vem da vítima?
Lembro
quando, em 2016, as senhoras e senhores deram o prêmio para Bob Dylan. De fato,
uma excelente escolha. Mas vocês conhecem Chico Buarque?
Apenas
para ficar em meu país, a minha lista de vencedores do prêmio Nobel incluiria
uma certa Clarice, uma par de anos de Cecília e uma década de homenagens para
Drummond. Eu ainda estou seguro que basta viajar e concluiríamos que cada
região esquecida do mundo conta com seu João Cabral de Melo Neto, com sua
enxada de Bernardo Elis ou salpicando de Orestes Barbosa.
Senhoras e senhores,
O mundo passa por rápidas e profundas transformações. Hoje, não se mede mais a
distância em quilômetros. Mas em direitos. As placas tectônicas da geopolítica
se movem e, com ela, os centros de poder e os polos de produção de arte.
Referência,
o prêmio que sai de seu instituto tem um papel a desempenhar. Mas, ao escolher
olhar para o mundo, vocês prestariam um enorme serviço para a humanidade e
abririam janelas para o diálogo e para a compreensão mútua. O mundo clama por
isso, inclusive para garantir nossa sobrevivência.
Descolonizem-se,
urgentemente. Não pode mais existir uma hierarquia para a emoção. E nem a
imposição de certos modelos e referências da arte como o padrão universal.
A
descolonização não é uma mera iniciativa de ampliar a diversidade. Não basta
"dar voz". Não se trata de uma concessão. Descolonizar implica
reconhecer uma mudança de paradigmas.
Descolonizar
um prêmio de dimensões internacionais é dar dignidade e esperança a milhões de
pessoas pelo mundo que, pelas suas escritoras e escritores, poderão sonhar e se
inspirar. A arte é política, como tudo mais em nossas vidas.
Descolonizar
é ajudar a promover uma mudança cognitiva de nossa existência e da relação
entre as diferentes culturas como forma de superar uma tensão insuportável.
Vocês,
em Estocolmo, têm um poderoso instrumento de paz nas mãos. Não desperdicem.
Saudações
democráticas,
Jamil
Chade
FONTE:
UOL, 08/10/2022
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