"Guiné - Irkutsk" - Adão Cruz
Guiné - Irkutsk
Não
chovia, mas o céu ameaçava desfazer-se em água. Era plúmbeo, presumivelmente a
oeste, e carregado de negro do lado oposto. Uma faixa mais clara nascia por
cima de Irkutsk e desfibrava-se ao longo do rio Angorá. Mais parecia um quadro
de Fiódor Vasiliev ou de Ivan Aivasovsky.
Como
a vida tem tantas formas de circularidade, sentei-me num banco de jardim à
beira do rio, e dei ordens à memória para me buscar aquele rapaz soviético que,
há muitos anos, num ardente dia de sol, as nossas tropas aprisionaram no norte
da Guiné. Era de Kiev, mas tinha nascido em Irkutsk, na Sibéria.
Técnico
de máquinas automáticas, oferecera-se, como voluntário e internacionalista,
para ajudar os guerrilheiros do PAIGC a combater as tropas colonialistas.
Na
pequena sala onde funcionava a secretaria do nosso aquartelamento, estava o
prisioneiro como que pregado a uma cadeira. Tinha na sua frente o capitão da
nossa Companhia, o capitão da Companhia de intervenção que o capturou, dois ou
três sargentos e outros tantos alferes, e eu.
Os
lábios do jovem soviético nascido em Irkutsk estavam gretados de sede e de sol.
Um sorriso feito de água, terra, fogo e ar, iluminado por um sol negro de melancolia,
denunciava um grande medo dos homens que tinha na sua frente.
O
capitão foi buscar um copo de água e entornou-a lentamente a uma mão travessa
da boca do rapaz. Os olhos quase saltaram das órbitas. Pedi ao capitão que me
desse o copo, enchi-o de água e raiva e dei-o a beber ao prisioneiro. Valeu-me
a firmeza com que o fiz e o facto de ser médico.
Se
algum dia a minha vida pudesse ser música!…
Desconfiado,
levou o copo à boca…
Ainda
hoje eu não sei falar de tudo o que treme nas mãos de uma criança!
O
céu arrependeu-se de chover. Seguimos para o lago Baikal, a maior reserva de
água doce do mundo. Segundo os cálculos, daria para matar a sede à humanidade
durante oitocentos anos. Quando senti nas mãos a água fria das margens
lembrei-me de um copo de água lá nos confins da Guiné.
Eu
não sou capaz de crescer para as palavras, mas dava tudo para cruzar os tempos
que ainda são tempo, e mostrar ao mundo a dimensão que o homem é, e a pequenez
que usa por força da fraqueza.
Adão Cruz
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