quinta-feira, 22 de abril de 2021

"Bibliocausto" - João Guimarães Rosa


 



Bibliocausto


Que a minha mão não trema


ao deitar no fogo forte e primitivo


todos os traidores


que me deram veneno.



Queimarei o frio


geometrizador da vida


lapidada através de lentes bem polidas


(ah, o horror daquela pedra voando,


tangida pela mão de não sei que demônio,


e a pensar, pelo espaço, que ainda tem arbítrio!…)…



Queimarei o detrator,


maníaco e vaidoso,


que quis deter a vida numa câmara lenta,


para a tingir depois numa câmara escura


(ah, o inferno galopando às doidas,


nos cavalos sem freios


da vontade cega e sem destino!…)…



Queimarei o louco,


ébrio de orgulho,


raivoso de fraqueza,


que destilava haxixe em frascos verdes


na paisagem alpina


(ah, o prazer com que ainda o queimaria


em cada uma das voltas pavorosas


do seu Eterno Retorno!…)…



E só ficará comigo


o riso rubro das chamas, alumiando o preto


das estantes vazias.


Porque eu só preciso de pés livres,


de mãos dadas,


e de olhos bem abertos…




João Guimarães Rosa


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