Portugal - A revolução dos Cravos faz 47 anos: dois textos, um vídeo e três poemas
Para que a memória não seja coisa vã. É
importante recordarmos o poeta e os homens que nos devolveram esse bem tão
precioso como o ar que respiramos. A NOSSA LIBERDADE! Para assistir à declamação do poema por Napoleão Mira clique no vídeo aqui
Era
uma vez um país
onde
entre o mar e a guerra
vivia
o mais infeliz
dos
povos à beira-terra.
Onde
entre vinhas sobredos
vales
socalcos searas
serras
atalhos veredas
lezírias
e praias claras
um
povo se debruçava
como
um vime de tristeza
sobre
um rio onde mirava
a
sua própria pobreza.
Era
uma vez um país
onde
o pão era contado
onde
quem tinha a raiz
tinha
o fruto arrecadado
onde
quem tinha o dinheiro
tinha
o operário algemado
onde
suava o ceifeiro
que
dormia com o gado
onde
tossia o mineiro
em
Aljustrel ajustado
onde
morria primeiro
quem
nascia desgraçado.
Era
uma vez um país
de
tal maneira explorado
pelos
consórcios fabris
pelo
mando acumulado
pelas
ideias nazis
pelo
dinheiro estragado
pelo
dobrar da cerviz
pelo
trabalho amarrado
que
até hoje já se diz
que
nos tempos do passado
se
chamava esse país
Portugal
suicidado.
Ali
nas vinhas sobredos
vales
socalcos searas
serras
atalhos veredas
lezírias
e praias claras
vivia
um povo tão pobre
que
partia para a guerra
para
encher quem estava podre
de
comer a sua terra.
Um
povo que era levado
para
Angola nos porões
um
povo que era tratado
como
a arma dos patrões
um
povo que era obrigado
a
matar por suas mãos
sem
saber que um bom soldado
nunca
fere os seus irmãos.
Ora
passou-se porém
que
dentro de um povo escravo
alguém
que lhe queria bem
um
dia plantou um cravo.
Era
a semente da esperança
feita
de força e vontade
era
ainda uma criança
mas
já era a liberdade.
Era
já uma promessa
era
a força da razão
do
coração à cabeça
da
cabeça ao coração.
Quem
o fez era soldado
homem
novo capitão
mas
também tinha a seu lado
muitos
homens na prisão.
Esses
que tinham lutado
a
defender um irmão
esses
que tinham passado
o
horror da solidão
esses
que tinham jurado
sobre
uma côdea de pão
ver
o povo libertado
do
terror da opressão.
Não
tinham armas é certo
mas
tinham toda a razão
quando
um homem morre perto
tem
de haver distanciação
uma
pistola guardada
nas
dobras da sua opção
uma
bala disparada
contra
a sua própria mão
e
uma força perseguida
que
na escolha do mais forte
faz
com que a força da vida
seja
maior do que a morte.
Quem
o fez era soldado
homem
novo capitão
mas
também tinha a seu lado
muitos
homens na prisão.
Posta
a semente do cravo
começou
a floração
do
capitão ao soldado
do
soldado ao capitão.
Foi
então que o povo armado
percebeu
qual a razão
porque
o povo despojado
lhe
punha as armas na mão.
Pois
também ele humilhado
em
sua própria grandeza
era
soldado forçado
contra
a pátria portuguesa.
Era
preso e exilado
e
no seu próprio país
muitas
vezes estrangulado
pelos
generais senis.
Capitão
que não comanda
não
pode ficar calado
é
o povo que lhe manda
ser
capitão revoltado
é
o povo que lhe diz
que
não ceda e não hesite
–
pode nascer um país
do
ventre duma chaimite.
Porque
a força bem empregue
contra
a posição contrária
nunca
oprime nem persegue
–
é força revolucionária!
Foi
então que Abril abriu
as
portas da claridade
e
a nossa gente invadiu
a
sua própria cidade.
Disse
a primeira palavra
na
madrugada serena
um
poeta que cantava
o
povo é quem mais ordena.
E
então por vinhas sobredos
vales
socalcos searas
serras
atalhos veredas
lezírias
e praias claras
desceram
homens sem medo
marujos
soldados «páras»
que
não queriam o degredo
dum
povo que se separa.
E
chegaram à cidade
onde
os monstros se acoitavam
era
a hora da verdade
para
as hienas que mandavam
a
hora da claridade
para
os sóis que despontavam
e
a hora da vontade
para
os homens que lutavam.
Em
idas vindas esperas
encontros
esquinas e praças
não
se pouparam as feras
arrancaram-se
as mordaças
e
o povo saiu à rua
com
sete pedras na mão
e
uma pedra de lua
no
lugar do coração.
Dizia
soldado amigo
meu
camarada e irmão
este
povo está contigo
nascemos
do mesmo chão
trazemos
a mesma chama
temos
a mesma ração
dormimos
na mesma cama
comendo
do mesmo pão.
Camarada
e meu amigo
soldadinho
ou capitão
este
povo está contigo
a
malta dá-te razão.
Foi
esta força sem tiros
de
antes quebrar que torcer
esta
ausência de suspiros
esta
fúria de viver
este
mar de vozes livres
sempre
a crescer a crescer
que
das espingardas fez livros
para
aprendermos a ler
que
dos canhões fez enxadas
para
lavrarmos a terra
e
das balas disparadas
apenas
o fim da guerra.
Foi
esta força viril
de
antes quebrar que torcer
que
em vinte e cinco de Abril
fez
Portugal renascer.
E
em Lisboa capital
dos
novos mestres de Aviz
o
povo de Portugal
deu
o poder a quem quis.
Mesmo
que tenha passado
às
vezes por mãos estranhas
o
poder que ali foi dado
saiu
das nossas entranhas.
Saiu
das vinhas sobredos
vales
socalcos searas
serras
atalhos veredas
lezírias
e praias claras
onde
um povo se curvava
como
um vime de tristeza
sobre
um rio onde mirava
a
sua própria pobreza.
E
se esse poder um dia
o
quiser roubar alguém
não
fica na burguesia
volta
à barriga da mãe.
Volta
à barriga da terra
que
em boa hora o pariu
agora
ninguém mais cerra
as
portas que Abril abriu.
Essas
portas que em Caxias
se
escancararam de vez
essas
janelas vazias
que
se encheram outra vez
e
essas celas tão frias
tão
cheias de sordidez
que
espreitavam como espias
todo
o povo português.
Agora
que já floriu
a
esperança na nossa terra
as
portas que Abril abriu
nunca
mais ninguém as cerra.
Contra
tudo o que era velho
levantado
como um punho
em
Maio surgiu vermelho
o
cravo do mês de Junho.
Quando
o povo desfilou
nas
ruas em procissão
de
novo se processou
a
própria revolução.
Mas
eram olhos as balas
abraços
punhais e lanças
enamoradas
as alas
dos
soldados e crianças.
E
o grito que foi ouvido
tantas
vezes repetido
dizia
que o povo unido
jamais
seria vencido.
Contra
tudo o que era velho
levantado
como um punho
em
Maio surgiu vermelho
o
cravo do mês de Junho.
E
então operários mineiros
pescadores
e ganhões
marçanos
e carpinteiros
empregados
dos balcões
mulheres
a dias pedreiros
reformados
sem pensões
datilógrafos
carteiros
e
outras muitas profissões
souberam
que o seu dinheiro
era
presa dos patrões.
A
seu lado também estavam
jornalistas
que escreviam
atores
que se desdobravam
cientistas
que aprendiam
poetas
que estrebuchavam
cantores
que não se vendiam
mas
enquanto estes lutavam
é
certo que não sentiam
a
fome com que apertavam
os
cintos dos que os ouviam.
Porém
cantar é ternura
escrever
constrói liberdade
e
não há coisa mais pura
do
que dizer a verdade.
E
uns e outros irmanados
na
mesma luta de ideais
ambos
sectores explorados
ficaram
partes iguais.
Entanto
não descansavam
entre
pragas e perjúrios
agulhas
que se espetavam
silêncios
boatos murmúrios
risinhos
que se calavam
palácios
contra tugúrios
fortunas
que levantavam
promessas
de maus augúrios
os
que em vida se enterravam
por
serem falsos e espúrios
maiorais
da minoria
que
diziam silenciosa
e
que em silêncio fazia
a
coisa mais horrorosa:
minar
como um sinapismo
e
com ordenados régios
o
alvor do socialismo
e
o fim dos privilégios.
Foi
então se bem vos lembro
que
sucedeu a vindima
quando
pisámos Setembro
a
verdade veio acima.
E
foi um mosto tão forte
que
sabia tanto a Abril
que
nem o medo da morte
nos
fez voltar ao redil.
Ali
ficámos de pé
juntos
soldados e povo
para
mostrarmos como é
que
se faz um país novo.
Ali
dissemos não passa!
E
a reação não passou.
Quem
já viveu a desgraça
odeia
a quem desgraçou.
Foi
a força do Outono
mais
forte que a Primavera
que
trouxe os homens sem dono
de
que o povo estava à espera.
Foi
a força dos mineiros
pescadores
e ganhões
operários
e carpinteiros
empregados
dos balcões
mulheres
a dias pedreiros
reformados
sem pensões
datilógrafos
carteiros
e
outras muitas profissões
que
deu o poder cimeiro
a
quem não queria patrões.
Desde
esse dia em que todos
nós
repartimos o pão
é
que acabaram os bodos
—
cumpriu-se a revolução.
Porém
em quintas vivendas
palácios
e palacetes
os
generais com prebendas
caciques
e cacetetes
os
que montavam cavalos
para
caçarem veados
os
que davam dois estalos
na
cara dos empregados
os
que tinham bons amigos
no
consórcio dos sabões
e
coçavam os umbigos
como
quem coça os galões
os
generais subalternos
que
aceitavam os patrões
os
generais inimigos
os
generais garanhões
teciam
teias de aranha
e
eram mais camaleões
que
a lombriga que se amanha
com
os próprios cagalhões.
Com
generais desta apanha
já
não há revoluções.
Por
isso o onze de Março
foi
um baile de Tartufos
uma
alternância de terços
entre
ricaços e bufos.
E
tivemos de pagar
com
o sangue de um soldado
o
preço de já não estar
Portugal
suicidado.
Fugiram
como cobardes
e
para terras de Espanha
os
que faziam alardes
dos
combates em campanha.
E
aqui ficaram de pé
capitães
de pedra e cal
os
homens que na Guiné
aprenderam
Portugal.
Os
tais homens que sentiram
que
um animal racional
opõe
àqueles que o firam
consciência
nacional.
Os
tais homens que souberam
fazer
a revolução
porque
na guerra entenderam
o
que era a libertação.
Os
que viram claramente
e
com os cinco sentidos
morrer
tanta tanta gente
que
todos ficaram vivos.
Os
tais homens feitos de aço
temperado
com a tristeza
que
envolveram num abraço
toda
a história portuguesa.
Essa
história tão bonita
e
depois tão maltratada
por
quem herdou a desdita
da
história colonizada.
Dai
ao povo o que é do povo
pois
o mar não tem patrões.
–
Não havia estado novo
nos
poemas de Camões!
Havia
sim a lonjura
e
uma vela desfraldada
para
levar a ternura
à
distância imaginada.
Foi
este lado da história
que
os capitães descobriram
que
ficará na memória
das
naus que de Abril partiram
das
naves que transportaram
o
nosso abraço profundo
aos
povos que agora deram
novos
países ao mundo.
Por
saberem como é
ficaram
de pedra e cal
capitães
que na Guiné
descobriram
Portugal.
E
em sua pátria fizeram
o
que deviam fazer:
ao
seu povo devolveram
o
que o povo tinha a haver:
Bancos
seguros petróleos
que
ficarão a render
ao
invés dos monopólios
para
o trabalho crescer.
Guindastes
portos navios
e
outras coisas para erguer
antenas
centrais e fios
dum
país que vai nascer.
Mesmo
que seja com frio
é
preciso é aquecer
pensar
que somos um rio
que
vai dar onde quiser
pensar
que somos um mar
que
nunca mais tem fronteiras
e
havemos de navegar
de
muitíssimas maneiras.
No
Minho com pés de linho
no
Alentejo com pão
no
Ribatejo com vinho
na
Beira com requeijão
e
trocando agora as voltas
ao
vira da produção
no
Alentejo bolotas
no
Algarve maçapão
vindimas
no Alto Douro
tomates
em Azeitão
azeite
da cor do ouro
que
é verde ao pé do Fundão
e
fica amarelo puro
nos
campos do Baleizão.
Quando
a terra for do povo
o
povo deita-lhe a mão!
É
isto a reforma agrária
em
sua própria expressão:
a
maneira mais primária
de
que nós temos um quinhão
da
semente proletária
da
nossa revolução.
Quem
a fez era soldado
homem
novo capitão
mas
também tinha a seu lado
muitos
homens na prisão.
De
tudo o que Abril abriu
ainda
pouco se disse
um
menino que sorriu
uma
porta que se abrisse
um
fruto que se expandiu
um
pão que se repartisse
um
capitão que seguiu
o
que a história lhe predisse
e
entre vinhas sobredos
vales
socalcos searas
serras
atalhos veredas
lezírias
e praias claras
um
povo que levantava
sobre
um rio de pobreza
a
bandeira em que ondulava
a
sua própria grandeza!
De
tudo o que Abril abriu
ainda
pouco se disse
e
só nos faltava agora
que
este Abril não se cumprisse.
Só
nos faltava que os cães
viessem
ferrar o dente
na
carne dos capitães
que
se arriscaram na frente.
Na
frente de todos nós
povo
soberano e total
que
ao mesmo tempo é a voz
e
o braço de Portugal.
Ouvi
banqueiros fascistas
agiotas
do lazer
latifundiários
machistas
balofos
verbos de encher
e
outras coisas em istas
que
não cabe dizer aqui
que
aos capitães progressistas
o
povo deu o poder!
E
se esse poder um dia
o
quiser roubar alguém
não
fica na burguesia
volta
à barriga da mãe!
Volta
à barriga da terra
que
em boa hora o pariu
agora
ninguém mais cerra
as
portas que Abril abriu!
José
Carlos Ary dos Santos
Mulheres de Abril
Mulheres de Abril
somos
mãos unidas
certeza já acesa
em todas
nós
Juntas formamos
fileiras
decididas
ninguém calará
a nossa
voz
Mulheres de Abril
somos
mãos unidas
na construção
operária
do país
Nos ventres férteis
a vontade
erguida
de um Portugal
que o povo
quis
Maria Teresa Horta
Soneto de abril
Evoé! de pâmpano os soldados
rompem do tempo em que Evoé! a terra
salvé rainha descruzando os braços
com seu pé de papiro pisa a fera.
Na écloga dos rostos despontados
onde dos corvos se retira a treva,
de beijo em beijo as ruas são bailados
mudam-se as casas para a primavera.
Evoé! o povo abre o touril
e sai o Sol perfeitamente Abril
maravilha da Pátria ressurreta.
Evoé! evoé! Tágides minhas
outras vez prateadas campainhas
sois na cabeça em fogo do poeta.
Natália Correia
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