"Painel" - José Régio
Painel
Era uma noite de luar medonho
(Lembro-me disto como dum sonho)
Alevantou-se um Homem a meu lado,
Todo nu, e desfigurado.
Mal me atrevendo a olhá-lo, eu que só
adivinhava
Seu corpo devastado que sangrava...
E uma lembrança, longe, longe, longe,
havia em mim
De já o ter amado, ou outro assim.
Seu rosto, que decerto, era sereno e
puro,
Resplandecia, como um mármore, no
escuro;
E as suas lágrimas, rolando devagar,
Deixavam rastros que faziam luar...
Eu prosseguia, todo trémulo e
confuso,
Cheio de amor e de terror por esse
intruso.
À minha mão direita, ele avançava
aereamente,
Com seu ar espectral e
transcendente...
Os seus pés nem pousavam no caminho;
E então, eu desatei a soluçar
baixinho,
Porque notara que em seu rosto
exangue
As suas lágrimas corriam misturadas
com seu sangue.
Oh, onde vira eu, essa figura
peregrina
Feita de terra humana e de ascensão
divina?
Sim, onde a vira eu, que, só de o
perguntar,
Me arrepiava, com vertigens de
ajoelhar?
Mas, de repente, como um sobressalto,
E como a angústia de quem rola muito
de alto,
Alguma coisa em mim passou, que
pressentia,
E que se arrepelava, e que tremia...
E que em meu ombro esquerdo alguém se debruçava,
Alguém que ria um riso que espantava,
Um riso tenebroso, e cheio de
atração,
Com fogo dentro como a boca dum
vulcão!
E, sem o ver, eu vi-o, todo inteiro,
Essoutro novo e inseparável
companheiro:
Um que também conheço, nem sei donde
nem de quando,
Por mais que me torture procurando...
E tinha pés de cabra, e tinha chifres, tinha pelos,
E tinha olhos sulfúricos, esfíngicos
e belos...
A baba do seu riso escorregava-lhe da
boca,
E em todo ele ardia uma lascívia
louca!
À minha mão direita, absorto, aéreo,
hirto,
Coroado de abrolhos e de mirto,
O Outro continuava a chorar lágrimas
caladas,
Com as mãos lassas como rosas
desfloradas...
Entre os dois, eu sentia-me pequeno e
miserando,
Vibrando todo, tumultuando e
soluçando,
Com os olhos meigos, lábios torpes --
indeciso
Entre um inferno e um paraíso!
Um riso doido e cínico, sem regra,
Subia em mim como uma onda negra,
E, estrelados de lágrimas, meus olhos
inocentes
Ajoelhavam como penitentes...
Entretanto, os dois vultos desmedidos
Ias crescendo entre os meus risos e
gemidos,
Crescendo sempre, sempre e tanto,
que, depois,
Eu ficava esmagado entre eles dois.
A noite em que isto foi, não sei...
sei lá?... (Seria
Essa em que minha mãe, com tanta
angústia, me paria...)
Sei que o luar era medonho, era
amarelo,
E que tudo isto parece um pesadelo!
José Régio
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