sexta-feira, 17 de junho de 2022

"Painel" - José Régio

 



Painel

 

 



Era uma noite de luar medonho


(Lembro-me disto como dum sonho)


Alevantou-se um Homem a meu lado,


Todo nu, e desfigurado.



 

Mal me atrevendo a olhá-lo, eu que só adivinhava


Seu corpo devastado que sangrava...


E uma lembrança, longe, longe, longe, havia em mim


De já o ter amado, ou outro assim.



 

Seu rosto, que decerto, era sereno e puro,


Resplandecia, como um mármore, no escuro;


E as suas lágrimas, rolando devagar,


Deixavam rastros que faziam luar...



 

Eu prosseguia, todo trémulo e confuso,


Cheio de amor e de terror por esse intruso.


À minha mão direita, ele avançava aereamente,


Com seu ar espectral e transcendente...



 

Os seus pés nem pousavam no caminho;


E então, eu desatei a soluçar baixinho,


Porque notara que em seu rosto exangue


As suas lágrimas corriam misturadas com seu sangue.



 

Oh, onde vira eu, essa figura peregrina


Feita de terra humana e de ascensão divina?


Sim, onde a vira eu, que, só de o perguntar,


Me arrepiava, com vertigens de ajoelhar?



 

Mas, de repente, como um sobressalto,


E como a angústia de quem rola muito de alto,


Alguma coisa em mim passou, que pressentia,


E que se arrepelava, e que tremia...




E que em meu ombro esquerdo alguém se debruçava,


Alguém que ria um riso que espantava,


Um riso tenebroso, e cheio de atração,


Com fogo dentro como a boca dum vulcão!



 

E, sem o ver, eu vi-o, todo inteiro,


Essoutro novo e inseparável companheiro:


Um que também conheço, nem sei donde nem de quando,


Por mais que me torture procurando...




E tinha pés de cabra, e tinha chifres, tinha pelos,


E tinha olhos sulfúricos, esfíngicos e belos...


A baba do seu riso escorregava-lhe da boca,


E em todo ele ardia uma lascívia louca!



 

À minha mão direita, absorto, aéreo, hirto,


Coroado de abrolhos e de mirto,


O Outro continuava a chorar lágrimas caladas,


Com as mãos lassas como rosas desfloradas...



 

Entre os dois, eu sentia-me pequeno e miserando,


Vibrando todo, tumultuando e soluçando,


Com os olhos meigos, lábios torpes -- indeciso


Entre um inferno e um paraíso!



 

Um riso doido e cínico, sem regra,


Subia em mim como uma onda negra,


E, estrelados de lágrimas, meus olhos inocentes


Ajoelhavam como penitentes...



 

Entretanto, os dois vultos desmedidos


Ias crescendo entre os meus risos e gemidos,


Crescendo sempre, sempre e tanto, que, depois,


Eu ficava esmagado entre eles dois.



 

A noite em que isto foi, não sei... sei lá?... (Seria


Essa em que minha mãe, com tanta angústia, me paria...)


Sei que o luar era medonho, era amarelo,


E que tudo isto parece um pesadelo!

 

 

 



José Régio




0 comentários:

  © Blogger template 'Solitude' by Ourblogtemplates.com 2008

Back to TOP