quinta-feira, 16 de junho de 2022

"Balada das Coisas sem Importância" - François Villon




Balada das Coisas sem Importância



Conheço se há moscas no leite,


Conheço pela roupa o homem,


Conheço o tédio e o deleite,


Conheço a fartura e a fome,


Conheço a mulher pelo enfeite,


Conheço o princípio e o fim,


Conheço pela chama o azeite,


Conheço tudo, menos a mim.



Conheço o gibão pela gola,


Conheço o rico pelo anel,


Conheço o fiel pela sacola,


Conheço a monja pelo véu,


Conheço o porco pela tripa,


Conheço o irmão pelo latim,


Conheço o vinho pela pipa,


Conheço tudo, menos a mim.



Conheço a mula e o cavalo,


Conheço o carro e a carreta,


Conheço a galinha e o galo,


Conheço o sino e a sineta,


Conheço a flor pelo talo,


Conheço Abel e Caim,


Conheço o pote e o gargalo,


Conheço tudo, menos a mim.



Ofertório


Príncipe, conheço tudo em suma,


Conheço o branco e o carmim,


E a morte que o fim consuma.


Conheço tudo, menos a mim.

 



François Villon


(trad: Ferreira Gullar)


François Villon é o grande poeta lírico francês da Idade Média, e um dos maiores poetas do mundo. Era jovem, beberrão, criminoso, desesperançado. Nascido em 1432, foi preso por homicídio, quase enforcado, solto e, então, aos 32 anos, desaparece. Ele passa da sátira burlesca ao pathos cristão sem piscar, e parece conter em si a soma de toda a potência da vida humana, inclusive da nossa, aqui, hoje, mas ainda em um contexto reconhecível como cristão medieval. Nenhum outro poeta da época consegue se comunicar conosco com tanta intimidade e urgência. Assim como Rabelais, nascido pouco depois de seu desaparecimento, Villon também representa esse momento de virada revolucionária da Idade Média ao Renascimento: ao mesmo tempo em que ainda medieval em seus temas e formas, ele já era, por sua individualidade pulsante, renascentista. (Não à toa é repetidas vezes citado em Gargantua e Pantagruel.) Seus temas refletem a fascinação crescente com a morte que caracteriza a atmosfera cultural cada vez mais mórbida do final da Idade Média. (Aquele que talvez seja o grande poema medieval espanhol, contemporâneo a Villon, também é uma meditação sobre o morte: “As coplas pela morte de meus pai“. Villon é canônico porque, como todo grande artista, continua se comunicando e dialogando com as novas gerações. Nos séculos XIX e XX, foi apropriado por poetas tão distintos como Rimbaud, Pound e Augusto de Campos, e reinterpretado seja como poeta maldito avant la lettre, seja como precursor dos modernistas e concretistas do XX.


Alex Castro Aqui

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