segunda-feira, 10 de maio de 2021

"Tríptico" - Herberto Helder


 


Tríptico



Transforma-se o amador na coisa amada com seu


feroz sorriso, os dentes,


as mãos que relampejam no escuro. Traz ruído


e silêncio. Traz o barulho das ondas frias


e das ardentes pedras que tem dentro de si.


E cobre esse ruído rudimentar com o assombrado


silêncio da sua última vida.


O amador transforma-se de instante para instante,


e sente-se o espírito imortal do amor


criando a carne em extremas atmosferas, acima


de todas as coisas mortas.



Transforma-se o amador. Corre pelas formas dentro.


E a coisa amada é uma baía estanque.


É o espaço de um castiçal,


a coluna vertebral e o espírito


das mulheres sentadas.


Transforma-se em noite extintora.


Porque o amador é tudo, e a coisa amada


é uma cortina


onde o vento do amador bate no alto da janela


aberta. O amador entra


por todas as janelas abertas. Ele bate, bate, bate.


O amador é um martelo que esmaga.


Que transforma a coisa amada.



Ele entra pelos ouvidos, e depois a mulher


que escuta


fica com aquele grito para sempre na cabeça


a arder como o primeiro dia do verão. Ela ouve


e vai-se transformando, enquanto dorme, naquele grito


do amador.


Depois acorda, e vai, e dá-se ao amador,


dá-lhe o grito dele.


E o amador e a coisa amada são um único grito


anterior de amor.



E gritam e batem. Ele bate-lhe com o seu espírito


de amador. E ela é batida, e bate-lhe


com o seu espírito de amada.


Então o mundo transforma-se neste ruído áspero


do amor. Enquanto em cima


o silêncio do amador e da amada alimentam


o imprevisto silêncio do mundo


e do amor. 




Herberto Helder

(Excerto do poema Tríptico)



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