terça-feira, 25 de maio de 2021

"O poema" - Herberto Helder

 




O poema

 

 



Um poema


cresce inseguramente


na confusão da carne.


Sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,


talvez como sangue


ou sombra de sangue pelos canais do ser.




Fora existe o mundo. Fora, a esplendida violência


ou os bagos de uva de onde nascem


as raízes minúsculas do sol.


Fora, os corpos genuínos e inalteráveis


do nosso amor,


rios, a grande paz exterior das coisas,


folhas dormindo o silêncio


a hora teatral da posse.




E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.




E já nenhum poder destrói o poema.


insustentável, único,


invade as casas deitadas nas noites


e as luzes e as trevas em volta da mesa


e a força sustida das cinzas


e a redonda e livre harmonia do mundo.


Em baixo o instrumento perplexo ignora


a espinha do mistério



- E o poema faz-se contra a carne e o tempo.



 

 


 

Herberto Helder




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