José de Sousa Miguel Lopes - Educação e identidade nacional: o caso de Moçambique
Em entrevista,
José de Sousa Miguel Lopes (Universidade do Estado de Minas Gerais - UEMG)
analisa o papel da Educação na construção da identidade nacional moçambicana,
durante primeiros anos da Frelimo. Para ler a entrevista realizada por Tatiana
Carlotti clique aqui
Este texto merece uma explicação prévia. Na
entrevista que acabaram de ler não consta a 1ª pergunta e respetiva resposta. Qual foi essa 1a pergunta? A entrevistadora pediu-me para explicar
como eu vim parar aqui no Brasil. Como a decisão que me trouxe a terras
brasileiras ocorreu há mais de três décadas, responder a uma pergunta
aparentemente tão simples, implicou ter que fazer uma viagem no tempo. A
decisão resultou, assim, de uma multiplicidade de fatores que, conjugados,
podem dar uma noção mais objetiva sobre as reais motivações que me
trouxeram a terras brasileiras nos finais da década de oitenta do século passado,
mais concretamente, no início de 1988. Quando terminei de responder a esta 1ª
pergunta, dei-me conta que a resposta tinha cerca de 5 páginas. Eu próprio
fiquei assustado com o tamanho da resposta, pois embora não tenha recebido
nenhum tipo de orientação quanto ao tamanho do texto, é óbvio que nenhum site
teria condições de publicar uma entrevista tão longa. E não estou tomando em
linha de conta o resto da entrevista. Assim, senti-me na obrigação de sugerir
que esta pergunta fosse cortada da entrevista. Minha proposta foi aceite.
Então, o texto que agora apresento constitui a 1ª resposta à pergunta que me
foi feita pela entrevistadora e que acabou não sendo publicada. Faculto-a agora
aos meus leitores do blog.
Eu
gostaria que você contasse primeiro como você veio parar aqui no Brasil
Para se compreender como aqui cheguei
faz-se necessário realizar uma pequena viagem no tempo. Sem descrever essa
viagem pela memória, ficaria pouco clara, a explicação deste contato, que
acabou se tornando mais duradouro do que eu poderia imaginar.
Em 1965, no Moçambique colonial, com
19 anos de idade concluí o curso de dois anos do Magistério primário que se
destinava a formar professores para o Ensino Primário (Fundamental, aqui no
Brasil) e, durante dez anos, fui professor neste nível de ensino em várias
escolas do meio rural e urbano. Enquanto fui professor, sempre recusei exercer
qualquer cargo de direção (no nível da escola ou do aparelho de Estado de
direção da educação), por estar em inteiro desacordo com a política colonial
vigente.
Nestes anos, de forma embrionária,
começaram a surgir as primeiras reflexões sobre as contradições, as
desigualdades e as injustiças que perpassavam o tecido da sociedade colonial em
Moçambique. Não estava ainda em condições de entender a verdadeira natureza de
tais contradições. Tão pouco os meus professores (conscientemente uns,
inconscientemente outros), estavam abertos ou predispostos para questionar,
ainda que de forma velada, a ordem colonial vigente.
Em 1969 comecei a frequentar o Curso
Noturno visando concluir a 10a e 11a classes
(pré-universitário), com o objetivo de ingressar na Universidade. Atraía-me o
Curso de Economia, entre outras razões, pelo fato de que, na época, lutando
contra a corrente dominante na Universidade, este curso se revelava muito
politizado (o que viria depois a confirmar), com professores que se
distanciavam muito de seus colegas de outras Faculdades em termos de crítica ao
sistema vigente. O aluno que obtivesse uma média superior a 15 pontos (numa
escala de 20), teria acesso direto à Universidade, sem necessidade de exame de
admissão. Foi o que aconteceu comigo. Ingressei assim no Curso de Economia da
Universidade de Lourenço Marques (atual Maputo), curso que interrompi em 1975,
quando me preparava para ingressar no 3º ano, devido às mudanças políticas que
ocorreram em Portugal (golpe de Estado de 25/04/1974) e, em decorrência, em
Moçambique (Independência do país ocorrida em 25/06/1975).
Importa destacar que o meu ingresso
na Universidade, permitiu–me a tomada de contato com o marxismo, embora de
forma um tanto condicionada (porque clandestina em 1973), e de forma mais
aprofundada e sistemática (porque o país já estava liberto do colonial
fascismo, em 1974 e 1975). Aprofundei as enormes contradições existentes entre
o discurso colonial e a prática que lhe era subjacente. Uma sociedade baseada
na injustiça, na exploração, no racismo, me foi provocando crescente
confrontação com os valores que perfilhava: a justiça, a igualdade dos seres
humanos independentemente da sua raça ou estatuto social, o direito à conquista
da independência e o direito do povo moçambicano dirigir soberanamente o seu
próprio destino.
Foi neste período que pude
intensificar minha aproximação a obras políticas e filosóficas, as mais
diversificadas de grandes pensadores como Karl Marx, Lenine, Bertrand Russel,
Nicos Poulantzas, Charles Bettelheim,
Antonio Gramsci e tantos outros.
Com a independência do país, a
esmagadora maioria dos portugueses, que eram as pessoas mais qualificadas em
vários campos da sociedade, abandonou Moçambique. Os poucos que ficaram tiveram
que assumir tarefas de grande responsabilidade, para as quais, inclusive, não
estavam preparados. Foi o meu caso, que estava dando aulas numa escola primária
e frequentando o 2º ano do Curso de economia e acabo sendo convidado para
trabalhar no Ministério da Educação recém-criado. Fui dirigir a Comissão de
Formação de Quadros que tinha a responsabilidade de dirigir toda a formação e
reciclagem de professores do ensino primário (Pré-primário à 4a classes)
em todo o país.
É justo destacar que nesta Comissão,
que integrava seis pessoas, trabalhei com alguns quadros moçambicanos que
tinham participado como guerrilheiros durante a luta armada de libertação
nacional, com um quadro do Vietnam, bem como com um cooperante alemão, com
larga experiência na reconstrução do seu próprio país, devastado pela 2a Guerra
Mundial, até quadros brasileiros e chilenos, exilados na Europa por virtude das
ditaduras militares nos seus países e que afluem a Moçambique logo após a
independência, todos irmanados na gigantesca tarefa de vencer o
subdesenvolvimento, na luta pela construção de uma nova sociedade.
Era imenso o volume de trabalho e,
praticamente, tudo era feito a partir do zero. Vi-me confrontado com tarefas,
para cuja dimensão e complexidade não estava preparado. Com efeito, era necessário
criar Centros de Formação de Professores Primários (C.F.P.P.s) em todo o país.
Definiu–se a criação de dez C.F.P.P.s (um por província) e isto implicava
obter, de imediato, instalações para o efeito. Missões religiosas que haviam
sido nacionalizadas (majoritariamente localizadas no campo) foram, em termos
físicos, os locais onde se deu a arrancada para a formação de professores no
Moçambique independente.
Esta tarefa levou–me à interrupção
do Curso de Economia, interrupção que, pensava eu, seria de curta duração.
Estava longe de imaginar que ficaria impossibilitado de estudar por mais de uma
década! Com efeito, depois de ficar cinco anos dirigindo esta Comissão, a
Ministra de Educação me indicou como Diretor Provincial de Educação e Cultura
de Maputo, a província que englobava a capital do país. Esta função corresponde
no Brasil à de Secretário Estadual de Educação. Fiquei nestas funções por um
período de cinco anos. Minha responsabilidade se ampliou, pois além da formação
de professores passei também a dirigir o ensino secundário, a alfabetização e
educação de adultos, a cultura e a educação física e desportos, áreas em que
tinha total inexperiência!
Nos últimos dois anos de minha
permanência na Província, intensificou-se a agressão do regime do ‘’Apartheid’’
a Moçambique e, obviamente, à Província onde eu trabalhava, que fazia fronteira
com aquele regime. Centenas de cidadãos foram mortos e outros raptados para a
África do Sul onde, após lhes ser feita uma lavagem no cérebro, eram treinados
e infiltrados em Moçambique como bandidos armados. Não foi fácil trabalhar em
zonas de guerra.
No início de 1984 cessei as minhas
funções na Província de Maputo e fui transferido para a Direção Nacional de
Formação de Quadros da Educação (DNFQE). Esta estrutura tinha sido criada em
1982 e originou-se na antiga Comissão de Formação de Quadros, passando a ter
tarefas mais vastas que incluíam, além
da formação de professores primários, a formação de professores secundários e
de outros quadros da educação: do próprio Ministério da Educação, das Direções
Provinciais de Educação e Cultura e das Direções Distritais de Educação e
Cultura. Enquanto Diretor Nacional realizei visitas de trabalho à Tanzânia,
Zimbabué, República Democrática Alemã e União Soviética, sendo algumas dessas
visitas chefiadas pela Ministra de Educação.
Naturalmente, à medida que o tempo
passava ia-me defrontando cada vez mais
com lacunas no campo teórico. Se é verdade que nenhuma revolução se pode fazer
sem a prática, não é menos verdade que ela não avança sem teoria que
sistematize e dê coerência a essa prática. Isto se aplicava igualmente à
componente Educação. Mais do que tudo, tive a possibilidade de, direta e
indiretamente, praticar mais do que teorizar. As lacunas no campo teórico
iam-se acentuando. A partir de 1984, data do meu regresso ao Ministério da
Educação, comecei a sentir a absoluta necessidade de retomar estudos
(interrompidos em 1975 e por um período que pensava eu na altura, não
ultrapassaria dois ou três anos, mas que acabaram, como atrás referi, por ser
13 anos!). Não se tratava de voltar ao curso de Economia (não mais me atraía)
mas, obviamente, a um curso na área de educação. Em 1987, após minha proposta
sobre o tipo de curso e país onde o desejava realizar, a Ministra de Educação
decidiu autorizar a minha formação superior na área educativa. Escolhi fazer
essa formação em Pedagogia no Brasil.
Penso que agora posso, finalmente,
esclarecer a razão porque escolhi o Brasil.
Inicialmente, ainda antes da minha
entrada na Universidade eu lia a Revista “O Cruzeiro” que chegava a
Moçambique, via Portugal, pois ela era assinada por um familiar. Recordo-me de
ler nessa revista as crônicas de David Nasser, e também de ter os primeiros
contatos com algumas das mais importantes componentes culturais brasileiras
como o samba e a música em geral, o Carnaval e o futebol.
Um dos universos
que mais me fascinou sobre esse Brasil tão geograficamente distante, foi o da
literatura. Aos poucos, os escritores Jorge Amado, José Lins do Rego, Carlos Drummond de Andrade, Machado de Assis, Graciliano
Ramos, João Cabral de Melo Neto, Vinicius de Moraes, e tantos outros, tornaram-se
familiares. O educador Paulo Freire era uma referência incontornável com sua “Pedagogia
do Oprimido”. Mas os ensaístas brasileiros também me chamaram a atenção,
nomeadamente, Josué de Castro e seu impactante “Geopolítica da fome” e “O ciclo da caranguejo” e Guerreiro
Ramos e sua obra “A Redução Sociológica - Introdução ao Estudo da Razão
Sociológica”.
Nessa época
tornei-me sócio do único Cine-Clube existente em Moçambique, lugar onde todos
os sábados à tarde eram exibidos filmes (alguns dos quais com exibição proibida
em circuito normal, como por exemplo ‘’O Encouraçado Pontemkine”, de
Sergel Eisenstein). Dado o número diminuto de sócios, o governo colonial mais
uma vez partia do pressuposto de que não adviria daí nenhum mal ao sistema. Era
a forma de pretensamente demonstrar as ”amplas
liberdades existentes na Províncias Ultramarinas’’! No fim de cada sessão,
havia debates sobre o filme assistido, momentos que eram aproveitados para a
abordagem de questões políticas e de denúncia (embora de forma pouco
explícita), ao colonialismo. Aí se iniciaram também meus primeiros contatos com
o cinema brasileiro. As obras de Glauber Rocha, do moçambicano–brasileiro Ruy
Guerra, Nelson Pereira dos Santos, Joaquim Pedro de Andrade, Anselmo Duarte,
Júlio Bressane revelaram-me, a rica e também conflituosa diversidade cultural
brasileira.
Sem nunca ter estado no Brasil,
pelas razões que atrás referi, o país não era totalmente desconhecido para mim.
Sabemos que nada substitui a presença in loco, mas as minhas
aproximações a este país foram efetivadas, sobretudo, através da área cultural.
Naquela época, podia afirmar, com relativa segurança, que ao desembarcar no
Brasil não me sentiria um “extraterreste”. Por outro lado, entendia que Moçambique e
Brasil tinham algumas semelhanças. Originárias da mesma matriz colonial, os
dois países eram e são atravessados por algumas semelhanças, pois ambos possuem
ainda enormes manchas de subdesenvolvimento, mais acentuadas em Moçambique,
pois tinha na época apenas 10 anos de independência. Interrogava-me sobre a
forma como os educadores brasileiros estariam enfrentando esses enormes
desafios da luta contra o analfabetismo e por uma elevação da qualidade de
ensino. Essas experiências poderiam, em alguma medida, iluminar as formas de enfrentar
os mesmos problemas em Moçambique.
Decisão tomada, era preciso, então,
torna-la operacional. O Brasil tinha um acordo com Moçambique relativo a
Estudantes-Convênio, através do qual eram facultadas vagas a estudantes
estrangeiros em universidades públicas brasileiras. O
Brasil facultava ainda uma pequena bolsa mas, segundo
as próprias autoridades brasileiras, manifestamente insuficiente para o
estudante se manter. A questão foi solucionada através do apoio de uma
organização internacional. Assim, cheguei ao Brasil onde fiz Pedagogia na
Universidade Federal de Minas Gerias (UFMG), depois fiz as provas de seleção
como qualquer estudante brasileiro para ingressar no Mestrado em Educação na
mesma instituição e, em seguida, fiz novamente provas de seleção para ingressar
no Doutorado em História e Filosofia da Educação na Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC/SP).
O livro que agora estou lançando é, exatamente, fruto
da experiência que acabei de relatar.
A história da educação deste passado
recente de Moçambique tem produzido trabalhos relevantes, mas ainda é exígua. É
uma atividade para os moçambicanos realizarem, fundamentalmente um trabalho
para os trabalhadores da educação, para os historiadores. Aos primeiros, como
se de jornalistas se tratassem, caberia estudar o presente e as suas
incertezas, a febre da atualidade, a colheita dos fatos acabada de fazer. Aos
segundos, o passado e as suas zonas de sombra, a angústia da perspectiva, a
paciente reconstrução de um mundo desaparecido.
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