"a faca não corta o fogo" - Herberto Helder
a faca não corta o fogo
a faca não corta o fogo,
não me corta o sangue escrito,
não corta a água,
e quem não queria uma língua dentro
da própria língua?
eu sim queria,
jogando linho com dedos, conjugando
onde os verbos não conjugam,
no mundo há poucos fenómenos do fogo,
água há pouca,
mas a língua, fia-se a gente dela por
não ser como se queria,
mais brotada, inerente, incalculável,
e se a mão fia a estriga e a retoma
do nada,
e a abre e fecha,
é que sim que eu a amava como bárbara
maravilha,
porque no mundo há pouco fogo a
cortar
e a água cortada é pouca,
ique língua,
que húmida língua, que muda, miúda,
relativa, absoluta,
e que pouca, incrível, muita,
e la poésie, c'est quand le
quotidien devient extraordinaire, e que música,
que despropósito, que língua língua,
é do Maurice Lefèvre, e rebenta com a
boca!
queria-a toda
Herberto Helder
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