sexta-feira, 27 de outubro de 2023

"Dia um, ano primeiro" - Carlos Loures

 



Dia um, ano primeiro

 




Aqui posto de comando


do Movimento das Forças Armadas…



 

De súbito, a manhã ficou mais clara:


uma ave luminosa invadira o tempo,


rasgando com as asas a cortina brumosa,


a toalha de pus, a cirrose do medo,


de repente, tudo assumiu outro sentido


na poalha dourada da luz amanhecente


com os soldados, os tanques, os comunicados,


com as espingardas floridas e com a gente.


O silêncio derramou das suas feridas


um rio de fogo que destruiu as mordaças


e um grito coletivo de raiva e esperança


inundou as ruas, as praças e as avenidas.


Um hálito de futuro as percorreu;


uma inscrição floresceu vitoriosa


sobre a pedra musgosa d’um velho muro


— como um murro nos dentes da opressão.


A criminosa apatia que por tantos anos


nos enevoara o gesto e sufocara a voz


esfumava-se na rosa evanescente da alvorada


e surgia agora transformada em canção.


Um mundo de intermináveis corredores,


de cárceres, de tortura, exílio e morte


diluía-se no ácido subtil desta alegria


que ocupara a cidade, o país e todos nós.


Pela noite, enquanto quase todos dormiam,


eclodira a soleira, o limiar de um novo tempo;


o assassínio, a fome e a ignorância


pareciam já só uma recordação pungente.


Os milhões de cérebros violentados


por décadas de estupidez e crueldade


pareciam ser produto da nossa imaginação


ou ter existido apenas num pesadelo atroz.


Adormecêramos velhos, ciciantes e derrotados;


acordávamos jovens, iluminados e vitoriosos


e isso deixava-nos atónitos e boquiabertos,


cegados pela luz feroz da liberdade.


Falo do instante, do momento feito de horas


em que o tempo se suspendeu solene


enquanto se esvaía a noite da repressão


e a manhã clara nascia, incandescente.


Não falo do tempo em que, hesitantes, procurávamos a bússola,


o sextante, a vela para navegar Abril, para sulcar o oceano


que o coração do povo abria generoso à Revolução.


Falo, sim, do momento em que o chacal


se escondeu, amedrontado, no fundo do covil,


espiando-nos a esperança, sonhando anoitecê-la


em setembros e marços de ódio e de vingança.


(Nas nossa mãos espreitavam já talvez


as garras de dilacerar revoluções e matar sonhos,


dentro de muitos de nos despontavam sementes


de outras novas e cinzentas servidões).


A luz atravessou o prisma de cristal da vida


e explodiu em mil cintilações de cor


perfurando o pulmão dos velhos medos


com uma seta d’amor, um estilhaço de Sol…


Desse momento falo, do instante breve e puro


em que o Paraíso pareceu estar à mão dos nossos dedos;


não, não é do passado que vos falo – juro,


pois foi no futuro que Abril aconteceu.



 

Carlos Loures


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