quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

"Zé da Carminha responde a chico bernardino" - Adriano Espínola

 




Zé da Carminha responde a chico bernardino

 




- cumpadre Bernardino


 minha vida é bem outra:


  já não venho do sertão


  mas de outros sumidouros



 

 daqui mesmo da cidade


 por onde passou meu corpo:


 nas favelas em que morei


 como quem veste uma roupa



 

 

 

roupa suja emprestada


(pois a terra era dos outros)


roupa de taipa apertada


quase pregada nos couros



 

 e foi trocando tal roupa


 que vim parar onde estou


 morando neste quarto buraco


 como quem no barro se abotoa



 

 por isso cedo aprendi


 a viver como quem pousa:


 hoje no pó duma lagoa


 amanhã nas costas dum morro



 

 não por mim essa andança


 (pois sempre mudei à força)


  mas pelos donos da cidade


  que nos enxotam feito moscas



 

 cumpadre Bernardino


 deixe dizer-lhe outra coisa:


 um homem bem que se perde


  no próprio chão que povoa



 

 basta viver agoniado


 com a miséria em seu trono


 pelejando à beira-vida


 o dia que finda teimoso



 

 por passar por tantas mudas


 aprendi mais uma coisa:


 a casa de cada homem


 começa no próprio corpo



 

 que se estende nos filhos


 na mulher e nas coisas


 que ele coloca ao redor


 prá se sentir mais duradouro



 

 

 

 

porém aqui nesta favela


 (bem como em qualquer outra)


 a vida fere com seus cacos


 pois nunca mostra seu todo



 

 morando assim desse jeito


 onde tudo é raso e pouco


 um homem pode sentir-se


 menos vivo do que morto





Adriano Espínola




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