quinta-feira, 3 de novembro de 2022

"Embrenharam-se madrugada adentro " - Yannis Ritsos

 




IV


Embrenharam-se madrugada adentro com o desdém do homem


         que tem fome,


nos seus olhos inertes coalhara uma estrela,


nos seus ombros carregavam o verão ferido.



 

Por aqui passou o exército com os estandartes colados ao corpo


com a teimosia mordida entre seus dentes como uma pera verde, com a areia da

 lua dentro das suas botas grossas


com o cisco da noite colado nas suas narinas e nos seus ouvidos.



 

De árvore em árvore, de pedra em pedra atravessaram o mundo, com um

 travesseiro de espinhos atravessaram o sono.


Traziam a vida como um rio nas suas mãos secas.



 

A cada passo ganhavam um palmo de céu — para cedê-lo.


Em cima das guaritas empederniam-se como as árvores


         chamuscadas,


e quando dançavam na praça, dentro das casas tremiam os tetos


e ressoavam os cristais nas prateleiras.



 

Ah, que canção balançou os picos das montanhas —


entre seus joelhos seguravam a pequena tigela da lua e ceavam,


e espremiam o ai do fundo dos seus corações


como se espremessem um piolho entre suas unhas grossas.



 

Quem te trará agora o pão quente no meio da noite para


         alimentares os sonhos?


Quem ficará na sombra da oliveira fazendo companhia à cigarra,


para que não silencie a cigarra,


agora que a cal do meio-dia pinta todos os lados do curral do


         horizonte


apagando seus grandes nomes viris?



 

Esta terra que recendia nas alvoradas,


a terra que era deles e nossa — sangue deles — como cheirava a


         terra —


e agora como nossas vinhas trancaram suas portas,


como minguou a luz nos telhados e nas árvores —


quem diria que uns se encontram debaixo da terra




e os outros presos?

 

O sol te acena bom-dia com tantas folhas,


o céu brilhando com tantos estandartes,


e uns presos e outros debaixo da terra.



 

Cala-te, a qualquer momento soarão os sinos.


Esta terra é deles e nossa.


Debaixo da terra, nas suas mãos cruzadas


         morrem,


aguardam para soarem a ressurreição. Esta terra


é deles e nossa — ninguém nos pode tomá-la.



 

VI

 


Assim com o sol contra o peito no mar que caleia o lado oposto do


dia, conta em dobro e tresdobro o trancar e a tortura da sede,


conta do começo a velha ferida,


e o coração tosta na brasa como as cebolas vaticiotas em frente


         às portas.


 

Enquanto vão mais suas mãos se parecem com a terra,


enquanto vão mais seus olhos se parecem com o céu.



 

Esvaziou-se a talha de azeite. Pouca borra no fundo. E o rato morto. Esvaziou-se a

 coragem da mãe com a jarra de barro e a cisterna.


As gengivas do deserto tornam-se amargas com a pólvora.



 

Onde haveria azeite agora para o candil de Santa Bárbara,


onde haveria hortelã para turibular o ícone dourado da tarde,


onde haveria um bocado de pão para a noite mendiga tocar sua


         serenata na lira.



 

No castelo do alto da ilha as íigueiras-da-barbaria e os asfódelos


         tornaram-se fantasmas.


A terra escavada pela canhonada e pelos túmulos,


o Comando demolido boceja remendado com céu. Não há mais


nenhum lugar


para outros mortos. Não há lugar para a tristeza ficar e trançar


         seus cabelos.


 

Casas queimadas que observam com olhos arrancados o mar


         marmoreado e as balas cravadas nas paredes


como as facas nas costelas do Santo que amarraram no cipreste.



 

O dia todo os mortos se aquecem de costas ao sol,


e somente quando anoitece os soldados rastejam o ventre sobre


         as pedras esfumaçadas,


procuram com as narinas o ar sem morte,


procuram os sapatos da lua mascando um pedaço de sola,


batem com os punhos na rocha, talvez rebente o olho-d'água,


mas do outro lado a parede é oca


e ouvem novamente a batida do projétil com muitos giros caindo


         no mar


e ouvem mais uma vez o berro dos feridos em frente ao portão.


Para onde ir? Teu irmão te chama.


A noite formada por todos os lados pelas sombras de barcos


         estrangeiros.


Os caminhos fechados com barricadas.


Somente para as montanhas ainda há caminhos.


E eles mandam os barcos à merda e mordem as línguas


para ouvir sua dor que não se tornou osso.



 

Em cima das seteiras os capitães mortos guardam eretos a fortaleza; debaixo das

 suas roupas se dissolve sua carne. Hei, irmão, não


         cansaste?



 

Brotou a bala dentro do teu coração,


cinco jacintos despontaram sob os braços da rocha seca.


a cada respiração o olor lê o conto de fadas — não te lembras?


a cada dentada o ferimento te conta a vida,


a camomila brotada na imundice da unha do dedão do teu pé


te conta a beleza do mundo.



 

Pegas a mão. É tua. Úmida pela salinidade.


E teu o mar. Enquanto arrancas o cabelo da cabeça do silêncio


goteja amargo o leite da figueira. Onde quer que estejas o céu te vê.



 

A estrela-d'alva enrola tua alma nos seus dedos como um cigarro,


para que fumes tua alma deitado de costas,


molhando tua mão esquerda no céu estrelado


e o rifle colado na tua mão direita como tua noiva,


para lembrares que o céu nunca te esqueceu


quando tirares do bolso interno sua velha carta


desdobrando a lua com dedos queimados lerás brio e glória.



 

Mais tarde subirás na guarita mais alta da tua ilha


e usando uma estrela como munição atirarás ao vento acima dos muros e mastros


acima das montanhas que se curvam como soldados feridos


e só assim gritarás para que os fantasmas se escondam na coberta


         da sombra —



 

Atirarás em cheio no seio do céu para encontrares o sinal azul


como se encontrasses sobre a camisa


o mamilo da mulher que amanhã amamentará teu filho como se encontrasses

 depois de anos o trinco do portão da casa


          dos teus pais.

 



Yannis Ritsos


(Grécia, 1909 - 1990)



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