"Embrenharam-se madrugada adentro " - Yannis Ritsos
IV
Embrenharam-se madrugada adentro com o desdém do homem
que tem fome,
nos seus olhos inertes coalhara uma estrela,
nos seus ombros carregavam o verão ferido.
Por aqui passou o exército com os estandartes colados ao corpo
com a teimosia mordida entre seus dentes como uma pera verde, com a areia da
lua dentro das suas botas grossas
com o cisco da noite colado nas suas narinas e nos seus ouvidos.
De árvore em árvore, de pedra em pedra atravessaram o mundo, com um
travesseiro de espinhos atravessaram o sono.
Traziam a vida como um rio nas suas mãos secas.
A cada passo ganhavam um palmo de céu — para cedê-lo.
Em cima das guaritas empederniam-se como as árvores
chamuscadas,
e quando dançavam na praça, dentro das casas tremiam os tetos
e ressoavam os cristais nas prateleiras.
Ah, que canção balançou os picos das montanhas —
entre seus joelhos seguravam a pequena tigela da lua e ceavam,
e espremiam o ai do fundo dos seus corações
como se espremessem um piolho entre suas unhas grossas.
Quem te trará agora o pão quente no meio da noite para
alimentares os sonhos?
Quem ficará na sombra da oliveira fazendo companhia à cigarra,
para que não silencie a cigarra,
agora que a cal do meio-dia pinta todos os lados do curral do
horizonte
apagando seus grandes nomes viris?
Esta terra que recendia nas alvoradas,
a terra que era deles e nossa — sangue deles — como cheirava a
terra —
e agora como nossas vinhas trancaram suas portas,
como minguou a luz nos telhados e nas árvores —
quem diria que uns se encontram debaixo da terra
e os outros presos?
O sol te acena bom-dia com tantas folhas,
o céu brilhando com tantos estandartes,
e uns presos e outros debaixo da terra.
Cala-te, a qualquer momento soarão os sinos.
Esta terra é deles e nossa.
Debaixo da terra, nas suas mãos cruzadas
morrem,
aguardam para soarem a ressurreição. Esta terra
é deles e nossa — ninguém nos pode tomá-la.
VI
Assim com o sol contra o peito no mar que caleia o lado oposto do
dia, conta em dobro e tresdobro o trancar e a tortura da sede,
conta do começo a velha ferida,
e o coração tosta na brasa como as cebolas vaticiotas em frente
às portas.
Enquanto vão mais suas mãos se parecem com a terra,
enquanto vão mais seus olhos se parecem com o céu.
Esvaziou-se a talha de azeite. Pouca borra no fundo. E o rato morto. Esvaziou-se a
coragem da mãe com a jarra de barro e a cisterna.
As gengivas do deserto tornam-se amargas com a pólvora.
Onde haveria azeite agora para o candil de Santa Bárbara,
onde haveria hortelã para turibular o ícone dourado da tarde,
onde haveria um bocado de pão para a noite mendiga tocar sua
serenata na lira.
No castelo do alto da ilha as íigueiras-da-barbaria e os asfódelos
tornaram-se fantasmas.
A terra escavada pela canhonada e pelos túmulos,
o Comando demolido boceja remendado com céu. Não há mais
nenhum lugar
para outros mortos. Não há lugar para a tristeza ficar e trançar
seus cabelos.
Casas queimadas que observam com olhos arrancados o mar
marmoreado e as balas cravadas
nas paredes
como as facas nas costelas do Santo que amarraram no cipreste.
O dia todo os mortos se aquecem de costas ao sol,
e somente quando anoitece os soldados rastejam o ventre sobre
as pedras esfumaçadas,
procuram com as narinas o ar sem morte,
procuram os sapatos da lua mascando um pedaço de sola,
batem com os punhos na rocha, talvez rebente o olho-d'água,
mas do outro lado a parede é oca
e ouvem novamente a batida do projétil com muitos giros caindo
no mar
e ouvem mais uma vez o berro dos feridos em frente ao portão.
Para onde ir? Teu irmão te chama.
A noite formada por todos os lados pelas sombras de barcos
estrangeiros.
Os caminhos fechados com barricadas.
Somente para as montanhas ainda há caminhos.
E eles mandam os barcos à merda e mordem as línguas
para ouvir sua dor que não se tornou osso.
Em cima das seteiras os capitães mortos guardam eretos a fortaleza; debaixo das
suas roupas se dissolve sua carne. Hei, irmão, não
cansaste?
Brotou a bala dentro do teu coração,
cinco jacintos despontaram sob os braços da rocha seca.
a cada respiração o olor lê o conto de fadas — não te lembras?
a cada dentada o ferimento te conta a vida,
a camomila brotada na imundice da unha do dedão do teu pé
te conta a beleza do mundo.
Pegas a mão. É tua. Úmida pela salinidade.
E teu o mar. Enquanto arrancas o cabelo da cabeça do silêncio
goteja amargo o leite da figueira. Onde quer que estejas o céu
te vê.
A estrela-d'alva enrola tua alma nos seus dedos como um cigarro,
para que fumes tua alma deitado de costas,
molhando tua mão esquerda no céu estrelado
e o rifle colado na tua mão direita como tua noiva,
para lembrares que o céu nunca te esqueceu
quando tirares do bolso interno sua velha carta
desdobrando a lua com dedos queimados lerás brio e glória.
Mais tarde subirás na guarita mais alta da tua ilha
e usando uma estrela como munição atirarás ao vento acima dos muros e mastros
acima das montanhas que se curvam como soldados feridos
e só assim gritarás para que os fantasmas se escondam na coberta
da sombra —
Atirarás em cheio no seio do céu para encontrares o sinal azul
como se encontrasses sobre a camisa
o mamilo da mulher que amanhã amamentará teu filho como se encontrasses
depois
de anos o trinco do portão da casa
dos teus
pais.
Yannis Ritsos
(Grécia, 1909 - 1990)
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