Os bastardos do coveiro
Prezado
secretário-geral da ONU, Antônio Guterres,
Consta que o senhor tem o emprego
mais difícil do mundo. Afinal, recai sobre seus ombros a tarefa de buscar a paz
mundial, a proteção ambiental, a erradicação da pobreza e a saúde do planeta.
Tudo isso sem o poder de um chefe de estado.
Mas tenho certeza que,
quando o senhor leu a descrição do emprego ao qual se candidatava há uns anos,
jamais imaginou que um dos aspectos seria lidar com Jair Bolsonaro. Sim, aquele mesmo que lhe
deixou esperando nesta semana em Nova York e não apareceu para o encontro que
tinha marcado. Aquele que mostrou cloroquina às emas, que negou a crise
climática, que usa funerais para fazer campanha eleitoral, que zomba do
sofrimento de seus cidadãos, que arma a população, que ataca a imprensa e que
diariamente tenta implodir a democracia.
Escrevo essa carta,
portanto, para deixar claro que a fraude não está apenas em sua agenda. Pelo
quarto ano consecutivo, Bolsonaro usou a tribuna da instituição que representa
o sonho de dias melhores como seu palanque eleitoral particular. Uma espécie de
cercadinho globalizado.
Pior: ele usou o palco
mundial para mentir, calotear e falsear. Mas Bolsonaro não faz isso por acaso.
Trata-se de uma estratégia de poder. Ele mente de forma institucional, com uma
operação sofisticada de disseminação de desinformação e com recursos públicos.
Ao falar diante do mundo,
Bolsonaro arrancou gargalhadas até de diplomatas brasileiros quando mentiu
sobre o fato de ter "extirpado a corrupção".
Mentir, no Brasil, mata.
Ele ignorou as quase 700
mil mortes no meu país pela covid-19 e afirmou que "não poupou esforços
para combater a pandemia". Ele omitiu o desmatamento recorde e apenas
disse que ele era "parte da solução para o meio ambiente". E disse
que a economia vai bem, sem citar os 33 milhões de famintos no país.
Diante de um púlpito
privilegiado, ele pretendia se apresentar como um visionário. Mas, como diria
Friedrich Nietzsche, um visionário mente a si mesmo. Um mentiroso mente aos
outros. E Bolsonaro mentiu diante de todos vocês. Sem corar e com tradução
simultânea para o árabe, inglês, russo, espanhol, chinês e francês.
Prezado
secretário-geral,
Em poucos dias, teremos a
eleição mais importante de nossa curta história democrática. Não votaremos
apenas para escolher o presidente. Mas para definir quem somos.
Mas, nesse processo, nosso
temor é de que a mentira institucionalizada seja transformada em um golpe. Que
a impostura abra uma longa noite para o país.
O senhor sabe muito bem o
que ocorreu nos EUA. Ao mentir sobre o resultado do pleito, Donald Trump influenciou milhões de
pessoas. Mais de um mês depois de encerrado, o processo ainda gerava amplo
debate. Em meados de dezembro de 2020, 82% dos apoiadores de Trump diziam que
não consideravam Biden como o presidente legítimo.
Mentir mata, inclusive a
democracia.
Sabemos dos
constrangimentos de seu cargo e os protocolos da diplomacia. Mas deixar
Bolsonaro defraudar o mundo e os brasileiros sem uma resposta tampouco é uma
solução.
Miguel de Unamuno era claro
sobre isso. "Em certos momentos, silenciar é mentir". Peço, portanto,
que o senhor e os demais líderes não optem por esse silêncio nos próximos dias,
quando o país for às urnas.
O que está em jogo é o
nosso futuro. E o de vocês também.
Saudações democráticas
Jamil Chade
FONTE: UOL, 24/09/2022
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