José de Sousa Miguel Lopes - Posfácio de "Cartas Gravadas - Celebração da Voz na Formação Docente"
Este livro é uma síntese teórico-poética sobre a autoria narrativa na formação inicial de professores, viagem de formação, que tem sido desenvolvida na Universidade Federal de Santa Catarina. É fruto das interlocuções com professores e estudantes, mas também escritores, leitores, contadores de histórias, cineastas. Leia abaixo o Posfácio de José de Sousa Miguel Lopes
POSFÁCIO
Vivemos em um mundo ruidoso. De muitas palavras. De muito diz
que diz. Somos internautas, twiteiros. Temos celulares sempre à mão e em
qualquer lugar e hora. Queremos que nos leiam, nos ouçam. Porém, temos
dificuldades de parar para ouvir. Quantas vezes impedimos o diálogo: na ânsia
de falar não escutamos. Temos muitas desculpas para não ouvir o outro e temos
muita vontade de falar. Queremos ser ouvidos, mas não queremos ouvir. Escutar,
ouvir é mais difícil. Para ouvir, temos que ficar em silêncio, temos que
prestar atenção, temos que esquecer nossos pensamentos e deixar que a ideia e a
voz do outro, que nos fala, entre em nós. Temos que reconhecer que o outro
existe e que tem algo de novo para nos dizer. E, ouvindo de verdade o outro,
podemos pensar, trocar ideias e aprender e criar novas realidades, juntos.
Como o leitor constatou, as participantes nestas cartas gravadas
contemplam o mundo ao redor e ele reflete-se em seu interior revelando-lhes
algo sobre eles próprios.
Esse olhar que as participantes empreendem é um olhar diferente,
mesmo quando se trata do olhar do leitor/a que se constitui através (ou por
mediação) da leitura, é um olhar que trata do aqui e do além, do antes e do
depois da experiência da viagem/leitura. Sendo assim podemos dizer que na
leitura desse percurso o leitor/a torna-se participante da mesma.
Entendendo essa viagem empreendida pelas participantes como uma
descoberta do eu, do "estrangeiro que habita em nós", como um
processo de aprendizagem, podemos considerá-la uma narrativa de iniciação na
busca da essência humana, bem como da própria essência do viajante, que em seu
desvelamento, desvela a todos nós.
Marguerite Yourcenar diz-nos que “o tempo é um grande escultor”.
E estas cartas gravadas, são cartas esculpidas em tempos de nevoeiro, cartas
que nos incentivam a descobrir a potência do encontro nesta realidade virtual.
Na carta de Elem (p. 34) ela faz uma belíssima reflexão sobre o
tempo “...Não vale a pena deixar que o tempo seja soprado pelas ventoinhas dos
computadores por onde algorítmos controlam a queda e o aumento das ações na
bolsa de valores. Não, eu segurarei o pó do meu relógio desintegrado, mesmo que
parte dele seja levada pela brisa do mar, ou pelo “vento suli”, como dizemos
aqui na minha terra, e o colocarei em uma ampulheta de vidro blindado. O tempo
continua passando, sendo marcado, mas não será disperso por qualquer canto
levado pelo vento violentamente de um lado para o outro me impondo urgências em
detrimento de valores”.
São cartas que nos conduzem a uma viagem de formação, que nos
fazem dialogar com a estética, com o ato criativo, com a capacidade inventiva
dos seres humanos. Fazem-nos imaginar esquemas para cruzar fronteiras, a
transgredir “verdades” definitivas. Nas cartas deparamo-nos com a indignação
face ao racismo, com a violência de gênero numa luta persistente visando
alcançar o princípio da igualdade e o compromisso com a emancipação. Conforme
refere Bia (p.40): “Em nossas práxis sociais, ainda há perseguição por etnia,
por religião, por orientação ou identidade sexual, pela pobreza e aqui caberiam
outras tantas inumeráveis violências reproduzidas cotidianamente”.
Neste sentido, as trocas de cartas entre as participantes podem
ser lidas como uma construção de resistências, como um processo de socialização,
de aproximação e cultivo da amizade que nos ajudam na travessia perante o
horror que estamos vivendo nestes tempos pandêmicos.
O que moveu Rosilene Silveira e Roselete Aviz ao irem ao
encontro das estudantes para ajudar a garantir-lhes uma vida e formação mais
bonita e alegre?
Uma primeira resposta seria a de que as cartas aqui gravadas não
são da ordem de um passatempo, mas um modo de tratar experiências de vida.
Inclusive aquela derivada da posição de estar diante de seres humanos que,
sobretudo, em tempos sombrios de pandemia vêm em busca de alívio. Ao
articularem vida, arte, ciência e sonho, as cartas podem aliviar nossas
angústias. Como refere o poeta António Gedeão: ”...O sonho comanda a vida./Que
sempre que um homem sonha/o mundo pula e avança/como bola colorida/entre as
mãos de uma criança”.
Ao longo das cartas, o leitor se depara com uma vasta lista dos
escritores “impertinentes” ou “inquietos” e as participantes juntam-se a eles,
por um caminho que lhes é próprio. Conduzidas por uma cartografia de afetos e
sábias reflexões de Rosilene e Roselete a leitura das cartas e de tantos
poemas, remetem-nos para uma instigante constelação de escritores. Merece uma
referência especial o impacto nas alunas do texto “Crianças inventando
mundos e a si mesmas: ideias para pensar a autoria narrativa infantil” da
profa. Gilka Girardello. Sem a pretensão de esgotar os inúmeros pensadores
nomeio aqui, entre tantos outros, alguns deles, nos quais as influências, ainda
que inconscientes, podem ter servido de inspiração aos navegantes destas cartas
gravadas: Paulo Freire, Vigotski, bell hooks, Manoel de Barros, Vinicius de
Moraes, Mia Couto, Noémia de Sousa, Jorge Larrosa, Gilka Girardello, Carlos
Skliar, Conceição Evaristo, Ailton Krenak, Roland Barthes, Mikhail Bakhtin,
Clarice Lispector, Zoia Prestes.
Cineastas como Glauber Rocha e Walter
Salles e pintores como Salvador Dali também se fizeram presentes nas cartas,
alargando o escopo da arte. Ao trazerem à cena a 7ª Arte não pude deixar de
lembrar e remeter-me ao diálogo entre as obras cinematográficas de Víctor Erice
e Abbas Kiarostami. Por meio da troca de “cartas filmadas”, cada um destes
cineastas lança seu olhar sobre a obra do outro.
Mais que uma simples troca intelectual entre autor e leitor, a
leitura é o enredo de dois solilóquios silenciosos e separados no tempo: o
diálogo interno do autor com ele mesmo enquanto concebe e escreve o que lhe vai
pela mente absorta; e o diálogo interno do leitor consigo próprio enquanto lê,
interpreta, assimila e recorda o que leu.
Ler é recriar. A palavra não é dada por quem a escreve, mas por
quem a lê. O diálogo interno do autor é a semente que frutifica (ou definha) no
diálogo interno do leitor. A aposta é recíproca, o resultado imprevisível.
Entendimento absoluto não há. Um mal-entendido - o folhear aleatório e absorto
de um texto que acidentalmente nos cai nas mãos - pode ser o início de algo
mais criativo e valioso do que uma leitura reta, porém burocrática e maquinal.
A professora Rosilene (p. 111) debruça-se sobre os sentidos da
palavra e refere que “Hoje, a palavra é “palavra”. Palavra escrita, falada,
dançada, repetida, insistente, coerente, carinhosa, poética, criativa, de
ânimo, de consolo, do outro, palavra minha, partilhada, ouvida, de mãe, de
filho, de acalanto, palavra que move sonhos, que se levanta contra a injustiça,
que carrega teorias, que ilumina a prática, que arrasta multidões, que cura a
ferida, que enxuga as lágrimas, palavra que conta histórias, palavra na vida”.
A professora Roselete (p. 85) interroga-se: “Quando a palavra é
brinquedo? A palavra pode ser brinquedo?” e acrescenta (p. 92) “No ato de
“erguer a voz”, pela tomada da palavra, os(as) estudantes deixam de ser
objetos para tornarem-se sujeitos”.
Autores são atores, livros são teatros. A verdadeira trama é a
que transcorre na mente do leitor-interlocutor. A ocasião da leitura, não menos
que a da criação literária, pode ser o momento para um encontro sereno,
amistoso e concentrado - algo cada vez mais raro e difícil, ao que parece, hoje
em dia - com a nossa própria subjetividade.
Dessa trajetória, extraímos um ponto em comum entre o exercício
dos processos de ensino/aprendizagem e o trato com a palavra. É ela quem
circula entre as cartas e o leitor, entre os educadores em formação ou já
formados e o “náufrago” que buscando o sentido, se remete frequentemente à
elevada potência do silêncio.
O silêncio não é a
negação da palavra, como a palavra não é tampouco a negação do silêncio. Há
silêncios eloquentes, como palavras vãs. Como o rumor de nossas palavras só tem
sentido porque nelas se reflete o mundo infinito que está para lá de sua
sonoridade, o mundo dos sentimentos, das ideias e das grandes realidades. Silêncio e palavra: dois instrumentos que
se completam reciprocamente. Existe um silêncio que se
pode chamar expressivo e uma palavra silenciosa, ou melhor, um silêncio que
fala, capaz de dizer qualquer coisa e uma palavra muda, que diz nada a quem a
escuta.
Não deixa de ser um momento de celebração, no mundo atual, ver a
palavra ser valorizada, apreciada, incentivada por alguém cuja prática
cotidiana se confronta com as demandas as mais variadas e também com os
silêncios os mais variados.
O
silêncio é, portanto, o lugar de sentidos que se fazem fora da representação da
palavra, mas estão no imaginário humano, nas tramas do que o sujeito aprende e
transforma em fantasia, em imaginação. Estamos,
pois, perante uma cartografia de afetos, perante acenos esplendorosos à poesia,
à amorosidade, à vida.
Com este livro as autoras e as futuras educadoras
conduzem-nos ao limiar de uma aventura no campo da celebração da voz, onde
combinam, em diálogo harmonioso, a fantasia e a imaginação, a palavra e o
silêncio. Indispensável tomar conhecimento dessa aventura.
Belo Horizonte, 12/12/2021
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