Alex Castro: A felicidade dos demônios
Alemanha nazista, verão de 1939 ou 1940. Um casal apaixonado, nas areias de uma praia, completamente absortos um no outro, concentrados em seu amor, entregues ao seu futuro cheio de possibilidades.
A felicidade dos demônios
Alex Castro
As pessoas do futuro vão
nos julgar duramente. Na verdade, espero que julguem. Significa que melhoraram.
Pior será se forem iguais a nós.
Nós, pessoas brasileiras brancas de classe média, moramos no inferno e temos uma vida boa e feliz.
Sabe quem mora no inferno
e tem uma vida boa e feliz?
Os demônios.
* * *
O Leme é um sub-bairro de Copacabana, um canto pacífico e fora de mão onde convivem os ricos da praia, os pobres do morro e todas as outras classes sociais entre elas. Um resumo do Rio de Janeiro.
Segunda passada, 17 de
setembro de 2018, eu estava na praia do Leme.
Em um banco, uma
senhorinha, suas amigas e um poodlezinho.
Andando pelo calçadão,
um menino e seu labrador, de focinheira.
Correndo pela areia,
um moço bombado e seus dois buldogues ambos soltos.
O menino vê os
buldogues vindo na direção dele e pára.
Não adianta: eles vêm
direto pra cima dele.
O menino tenta gritar:
“Segura eles, segura
eles.”
Não adianta: os
buldogues avançam sobre seu labrador que, coitado, de focinheira, não pode nem
se defender.
A senhorinha e suas
amigas gritam, o poodle rosna, os buldogues atacam, o labrador chora, uma
confusão geral.
O dono dos buldogues
finalmente consegue alcançá-los e separar todo mundo.
Mas o homi está puto.
Muito puto.
Ele grita com as
pessoas que reclamaram:
“Porra, nem sangrou,
tá tudo bem!”
Ele grita com o menino
do labrador:
“Caralho, por que não
deu meia-volta?”
Ele grita com seus
próprios buldogues
“Seus merdas,
desobedientes, vocês vão ver!”
E lá se vai ele,
chutando e xingando seus próprios buldogues, e ficamos nós, as testemunhas, nos
olhando estupefatas:
“Ele jura que está
todo mundo errado, menos ele.”
* * *
Presenciei essa cena e
quis escrever esse texto, sobre as inabaláveis autoestima e autoconfiança do
homem hetero branco, blá blá blá.
Mas, aí, nesse mesmo
Leme, nesse mesmo dia, a poucos metros mas muitos mundos de distância, um pai
de família negro, vigia de restaurante no bairro, foi até o ponto de ônibus
esperar sua mulher e seus dois filhos que estavam chegando de Kombi. Sabe como
é, chuva fina, comunidade tensa, queria voltar com eles pra casa, protegê-los.
Estava vestindo bolsa-canguru e tudo, para o filhinho de quatro meses.
Policiais
confundiram seu guarda-chuva
com um fuzil e abriram
fogo.
* * *
Às vezes, acho que a
história julgará as pessoas cariocas brancas de classe média de hoje como
julgou as pessoas civis da Alemanha durante a Segunda Guerra:
“Tinha gente sendo
colocada no forno e metralhada por um guarda-chuva a um quarteirão da sua casa.
Com que direito você
ousa prosseguir com sua vida normal, escrevendo sobre atenção e cuidado, lendo
Goethe e ouvindo Beethoven, ao invés de largar tudo e lutar por essas vítimas?
Que tipo de pessoa é
você se resolver esse problema não toma precedência sobre tudo?”
* * *
Volto a essa foto.
Olho, observo, analiso, absorvo cada detalhe.
Já eu, que não sou
nazista (Deus me
livre!), que sou muito melhor do que essas pessoas alemãs alienadas
ou cúmplices, estou aqui, vivendo minha vida e trabalhando meu trabalho,
tomando vinho e consumindo séries, assinando petições online e compartilhando
textos no Facebook, abraçando minha linda namorada nas areias de Ipanema e
fazendo planos para o futuro…
… enquanto o Brasil
queima; enquanto a juventude negra é massacrada; enquanto mulheres não
conseguem andar com segurança no espaço público; enquanto homossexuais são
perseguidos e pessoas trans invisibilizadas.
Eu me pergunto:
“De que maneira sou
melhor que esse casal?”
Para o moço morto por
portar um guarda-chuva a duas quadras da minha casa, de que maneira eu sou melhor,
mais útil, mais benéfico, do que esse casal para seus vizinhos judeus enviados
para Auschwitz?
Na ponta da minha
língua, tenho dezenas de justificativas perfeitamente razoáveis que me absolvem
até o fim dos tempos.
Mas a foto continua me
acusando.
Não é uma foto: é um
espelho.
* * *
As pessoas do
futuro vão nos
julgar muito duramente.
Na verdade, espero que
julguem.
Significa que
melhoraram.
Pior será se forem
iguais a nós.
* * *
A foto,
uma foto oficial de propaganda do governo nazista, está em exposição no
Museu Topografia
do Terror, em Berlim, no prédio onde funcionou a sede da Gestapo.
* * *
FONTE: Aqui
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