"Sonho de um sonho" - Carlos Drummond de Andrade
Sonho
de um sonho
Sonhei
que estava sonhando
e que
no meu sonho havia
outro
sonho esculpido.
Os
três sonhos sobrepostos
dir-se-iam
apenas elos
de
uma infindável cadeia
de
mitos organizados
em
derredor de um pobre eu.
Eu
que, mal de mim! sonhava.
Sonhava
que no meu sonho
retinha
uma zona lúcida
para
concretar o fluido
como
abstrair o maciço.
Sonhava
que estava alerta,
e
mais do que alerta, lúdico,
e
receptivo, e magnético,
e em
torno a mim se dispunham
possibilidades
claras,
e,
plástico, o ouro do tempo
vinha
cingir-me e dourar-me
para
todo o sempre, para
um
sempre que ambicionava
mas
de todo o ser temia...
Ai de
mim! que mal sonhava.
Sonhei
que os entes cativos
dessa
livre disciplina
plenamente
floresciam
permutando
no universo
uma
dileta substância
e um
desejo apaziguado
de
ser um ser com milhares,
pois
o centro era eu de tudo
como
era cada um dos raios
desfechados
para longe,
alcançando
além da terra
ignota
região lunar,
na
perturbadora rota
que
antigos não palmilharam
mas
ficou traçada em branco
nos
mais velhos portulanos
e no
pó dos marinheiros
afogados
em mar alto.
Sonhei
que meu sonho vinha
com a
realidade mesma.
Sonhei
que o sonho se forma
não
do que desejaríamos
ou de
quanto silenciamos
em
meio a ervas crescidas,
mas
do que vigia e fulge
em
cada ardente palavra
proferida
sem malícia,
aberta
como uma flor
se
entreabre: radiosamente.
Sonhei
que o sonho existia
não
dentro, fora de nós,
e era
toca-lo e colhe-lo,
e sem
demora sorve-lo,
gasta-lo
sem vão receio
de
que um dia se gastara.
Sonhei
certo espelho límpido
com a
propriedade mágica
de
refletir o melhor,
sem
azedume ou frieza
por
tudo que fosse obscuro,
mas
antes o iluminando,
mansamente
convertendo
em
fonte mesma de luz.
Obscuridade!
Cansaço!
Oclusão
de formas meigas!
Ó
terra sobre diamantes!
Já
vos libertais, sementes,
germinando
à superfície
deste
solo resgatado!
Carlos
Drummond de Andrade
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