sexta-feira, 27 de junho de 2014

"Ode à Poesia' - Pablo Neruda


Ode à Poesia

Perto de cinquenta anos
caminhando contigo,
Poesia.
A princípio me emaranhavas os pés
e eu caía de bruços
sobre a terra escura
ou enterrava os olhos
na poça
para ver as estrelas.
Mais tarde te apertaste a mim
com os dois braços da amante
e subiste pelo meu sangue
como uma trepadeira.
E logo te transformaste
em taça.
Maravilhoso foi ir derramando-te
sem que te consumisses,
ir entregando tua água inesgotável,
ir vendo que uma gota caia
sobre um coração queimado
que de suas cinzas revivia.
Mas ainda não me bastou.
Andei tanto contigo
que te perdi o respeito.
Deixei de ver-te como náiade vaporosa,
te pus a trabalhar de lavadeira,
a vender pão nas padarias,
a tecer com as simples tecedoras,
a malhar ferros na metalurgia.
E seguiste comigo andando pelo mundo,
contudo já não eras
a florida estátua de minha infância.
Falavas agora com voz de ferro.
Tuas mãos foram duras como pedras.
Teu coração foi um abundante
manancial de sinos,
produziste pão a mãos cheias,
me ajudaste a não cair de bruços,
me deste companhia,
não uma mulher,
não um homem,
mas milhares, milhões.
Juntos, Poesia, fomos ao combate,
à greve, ao desfile, aos portos,
à mina e me ri quando saíste
com a fronte tisnada de carvão
ou coroada de serragem
cheirosa das serrarias.
Já não dormíamos nos caminhos.
Esperavam-nos grupos de operários
com camisas recém-lavadas
e bandeiras rubras.
E tu, Poesia,
antes tão desventuradamente tímida,
foste na frente e todos se acostumaram
ao teu traje de estrela cotidiana,
porque mesmo se algum relâmpago delatou tua família,
cumpriste tua tarefa,
teu passo entre os passos dos homens.
Eu te pedi que fosses utilitária e útil,
como metal ou farinha, disposta a ser arada,
ferramenta, pão e vinho, disposta,
Poesia, a lutar corpo-a-corpo e cair ensanguentada.
E agora, Poesia,
obrigado,
esposa, irmã ou mãe ou noiva,
obrigado,
onda marinha, jasmim e bandeira,
motor de música,
longa pétala de ouro,
campana submarina,
celeiro inextinguível,
obrigado terra de cada um de meus dias,
vapor celeste e sangue de meus anos,
porque me acompanhaste
desde a mais diáfana altura
até a simples mesa dos pobres,
porque puseste em minha alma
sabor ferruginoso e fogo frio,
porque me levantaste
até a altura insigne dos homens comuns,
Poesia,
porque contigo,
enquanto me fui gastando,
tu continuaste desabrochando tua frescura firme,
teu ímpeto cristalino,
como se o tempo
que pouco a pouco me converte em terra
fosse deixar correndo
eternamente as águas de meu canto.

Pablo Neruda

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