quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

José de Sousa Miguel Lopes - Carta aberta aos professores e alunos: a obrigação ética de dizer "não" às guerras

 





Há cerca de duas décadas (2004) escrevi um texto que postei no blog em 2016 (ver aqui). Constatei que o site que publicou meu texto não está mais acessível. O texto não perdeu atualidade. Assim retomo-o e o disponibilizo agora.

 

A guerra é o ato mais sangrento passível de acontecer, por subordinar ao terrorismo dos que têm mais força, os inocentes que vão ao altar do sacrifício, os seres humanos não possuidores de outros bens além dos seus próprios corpos, memória, ideais, família, princípios e objetivos de vida.

A guerra movida contra o Iraque acabou, afirmou George W. Bush um mês depois da invasão das tropas americanas aquele país. Como todos sabemos, a guerra não só não acabou , como parece ter tendência a se prolongar por muito tempo. Mas já outras guerras se desenham no horizonte. Qual a próxima? Irã? Coréia do Norte? Síria? Países distantes, não? E amanhã, que poderá acontecer, quando existe um consenso dos analistas, de que as guerras do século XXI, serão guerras pela água? Quando se pensa nos países com grandes recursos hídricos, de imediato nos inquietamos como a enorme possibilidade de se tornarem vítimas potenciais dos interesses dos poderosos. Sendo o Brasil, o país do mundo com maiores reservas deste precioso líquido, não deixa de ser perturbador imaginar o que está por vir.

Não podemos deixar de afirmar que estes problemas dizem respeito, não a este ou aquele país em particular, mas a toda a humanidade. Como educadores ou futuros educadores, que papel nos cabe?

A educação é demasiado importante em nossa vida e na vida dos povos que não nos podemos tornar indiferentes à paz e á guerra.

Entre a paz e a guerra existe um abismo. Sabem-no os povos por experiência própria e alheia. Por intuição, todos sabemos que não existem razões que o desmintam, assumindo inclusivamente que praticamente todas as sociedades humanas transitaram com facilidade entre uma e outra: da paz à guerra e desta àquela. Ás vezes, parecia que “juntas” ou em oposição, exigindo ou justificando a luta como condição prévia para o estabelecimento de qualquer trégua, o combate como uma forma de procurar a concórdia, o ataque como uma estratégia que torne boa a defesa, a ameaça da guerra como garantia de uma paz duradoura...E, sem dúvida, o abismo existe. Existe sempre.

Na realidade trata-se de um abismo que adota as formas de um precipício que nos coloca ante um vazio ético e moral sem retorno, da qual se faz parte e á qual se chega por diversos caminhos. Também através da educação. E, sem dúvida, também por sua carência ou pelas desiguais oportunidades que oferece a quem está de um ou de outro lado das fronteiras: na riqueza ou na pobreza, no Norte ou no Sul, na liberdade ou na opressão, dentro ou fora...

Sem educação, o abismo que existe entre a paz e a guerra se amplia, revelando os persistentes triunfos da barbárie, perpetuando a sedução da indolência e da ignorância com todas as suas misérias, aumentando a injustiça e a exclusão, marginalizando homens e mulheres no seu direito a construir um futuro que lhes permita serem melhores, negando a convivência ou limitando-a até extremos que conduzem ao desespero e á humilhação.

Ainda que nos custe aceitá-lo, temos evidências de que por via da educação se legitimaram e exaltaram as vantagens da guerra, enfatizando sua contribuição para o avanço da ciência, da tecnologia e, incrivelmente, até da democracia.

Mesmo assim, em nome da educação e a partir dela, se justificam muitos dos discursos que optaram por “vencer” recorrendo à força antes que por “convencer” fazendo uso da razão. Recordemos, não sem constrangimento, a ânsia belicista que animaram e animam as crenças pedagógicas que sustentam seu discurso – e o que é ainda pior, suas práticas – através do dogmatismo, da xenofobia, do fundamentalismo, do imperialismo ou do radicalismo em qualquer de suas manifestações.

Que podemos pensar, sentir e fazer nós os professores para continuarmos pensando na paz, na educação para a paz? Que postura devemos adotar perante a guerra? Tomemos como base para nossas reflexões a recente guerra movida pelos EUA contra o Iraque.

Em primeiro lugar, creio que não podemos permanecer impassíveis e indiferentes ante tanta imoralidade, ante tanto despropósito, ante tanta mentira. Quem afirma que não quer envolver-se em política está adotando, de forma patente, uma postura política, que é a de manter-se á margem. É uma obrigação cidadã assumir uma postura, e uma exigência da ética civil ficar ao lado não daqueles que fazem a história, mas daqueles que a sofrem. Está claro que, a meu ver, existem vítimas indiscutíveis neste conflito: os habitantes de Iraque, as crianças inocentes que vejo jogar futebol nas ruas, as meninas que vemos correr nas praças, as mulheres e os homens que improvisam refúgios para se protegerem... Enquanto tantos abandonam o país os inspetores, os diplomatas, os turistas... “Deixemo-los a eles, os pobres, os miseráveis, a quem vamos destruir”, veem-nos dizer os poderosos.

Em segundo lugar, creio que é imprescindível analisar a situação com rigor. Compreender que o conceito de guerra preventiva é uma perversão do direito. Há dias explicava isto aos meus alunos: Imaginemos que um professor chega à aula e diz aos alunos que coloquem as mãos sobre a carteira, imaginemos que com um machado eu comece cortando vossos dedos, imaginemos que a justificação que apresento para este ato é o de prevenir a cola na prova... Que injustiça, que falta de lógica. Pois bem, o castigo da guerra preventiva é a morte para muitos inocentes. É necessário ter em conta que o unilateralismo quebra a ordem internacional. Cada país poderá declarar guerra quando o considere justo e necessário. No será necessária nenhuma concordância da ONU, nem exigência de provas, nem apresentação de evidências. Pudemos observar como o avanço dos inspetores se contrapõem às ameaças, à presença de tropas e à exigência de prazos impostos. Não se podem ignorar que existem interesses econômicos (venda de armas, negócios com o petróleo, benefícios decorrentes da reconstrução...), interesses geoestratégicos (domínio da região, imposição do poder...), eurização frente à hegemonía do dólar... Por outro lado, dizer que quem se opôs à guerra foram os defensores de Sadam Hussein, não foi mais que uma mentira. Dizer que quem se opôs ao conflito estava alimentando o terrorismo internacional não é mais que uma falácia. Não existiram provas evidentes das tão propaladas conexões do Iraque com a Al Qaeda.

Em terceiro lugar, é indispensável reconhecer que se abandonou a via da negociação e do diálogo exigida pelos inspetores e aconselhada pela maioria de membros do Conselho de Segurança. Quebraram-se os prazos numa inadmissível urgência para iniciar os bombardeamentos. A diplomacia fracassou porque havia interesse em desencadear um conflito armado que mostrasse claramente ao mundo quem é que manda.

Em quarto lugar, há que deixar bem claro que qualquer guerra não só converte em vítimas aqueles a quem mata, fere ou empobrece. São vítimas da guerra os agressores porque se aviltam, se enchem de ignomínia e de brutalidade. E também são vítimas as testemunhas que aprendem terror, violência e mentira. As guerras são sempre declaradas pelos poderosos e as sofrem os débeis. Se um país perda a guerra, a ganham os ricos. Se um país ganha a guerra a perdem seus pobres.

Queridos professores e alunos, creio que ante o horror dos recentes bombardeamentos não podemos permanecer impassíveis. Há que gritar não à guerra, a todas as guerras, não em nosso nome, não com nosso silêncio. É preciso tomar posição pela paz. Não podemos virar as costas ao conflito. Não devemos ignorar as razões que levaram à destruição de tantos inocentes. Que fazer? Debater os problemas da paz entre os professores. A ética “na” e “da” profissão docente deve tomar partido. Debater este assunto nas aulas, convidar os alunos a se expressarem, organizar ações informativas, manifestar publicamente nossa postura contra a guerra... As instituições educativas não podem permanecer á margem do sofrimento do mundo.

Esta situação me faz refletir sobre o sentido profundo da democracia. Como é possível que quem governe nos tenha conduzido a uma guerra, quando milhões de cidadãos gritaram milhares de vezes que não a queriam? A quem representam os governantes? Em nome de quem decidem? É preciso reinventar a democracia, reconstruí-la, aprofundar seu sentido moral. A maioria dos votos, ainda que seja absoluta, não legitima eticamente a tomada de qualquer decisão. Se assim fosse, estar-se-ia matando em nosso nome, em nome dos cidadãos e cidadãs que só querem a paz.

Defendemos uma educação que reivindique a paz. Assim como nos agradam os esforços que estimulam o poder do diálogo e da negociação, o valor da razão face á razão do “valor”, os benefícios da mediação e do pacto em contraste com os desvios que se apoiam na imposição e na destruição. Uma educação que não oculte o conflito nem as divisões que ocorrem nas sociedades modernas, que não encubra os maus tratos (a crianças, mulheres, negros, velhos, refugiados, imigrantes, etc.), a violência, a agressão, os desequilíbrios, as vítimas de cada uma das guerras já travadas e por travar...

Uma educação, contudo, com uma visão positiva. Ou, dito de outro modo, a favor de processos que estimulem a construção de uma sociedade que desvele, enfrente e resolva os conflitos pacificamente, provocando mudanças estruturais de modo não-violento, fomentando valores e atitudes que fortaleçam a cooperação e a convivência numa sociedade cada vez mais globalizada. Uma educação “em” paz e “para a” paz, disposta a denunciar a impugnar os riscos inerentes à contínua presença da guerra no mundo, agravada pela perversidade de suas estratégias e a intensidade destrutiva que armazenam os arsenais atômicos, químicos, biológicos...de que dispõem numerosos países. O “não à guerra” – que gritaram todos os povos do mundo perante o recente ataque ao Iraque – expressa-se na rebeldia individual e coletiva que combate e condena a falta de razão de um destino que conduz á morte, á dor, ao sofrimento, ao fracasso ecológico e humano.

É um “não” ético e, por isso, pedagógico. Um “não” que deve ensinar-se como direito e responsabilidade, como sentimento e atitude ante o que é sempre possível e desejável deter na mente dos homens, nas decisões dos governos. A guerra, dizia Cooper-Prichard no final do século XVI é o “inverno da civilização”. Hoje mais do que nunca, quando nos assaltam as incertezas, necessitamos da luz da primavera.

 


1 comentários:

Unknown 25 de fevereiro de 2022 às 14:03  

Obrigada por partilhar, Miguel!
Como você afirma, o texto não perdeu sua atualidade. É triste afirmar isso, não por causa do caráter clássico das ideias, mas porque ainda não conseguimos superar os problemas que você aponta e que estamos vivendo no contexto mundial atual.
É importante o destaque ao significado da educação e ao papel de professores e estudantes na discussão sobre os acontecimentos. E na reflexão sobre o compromisso ético que precisamos assumir neste momento.
Grande abraço!

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