sexta-feira, 14 de junho de 2019

"O Dia dos Insurgentes" - Pedro Tierra

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O Dia dos Insurgentes

O sol se levanta sobre cidades vazias.
Hoje, a imagem virtual se faz gesto. 
Concreto, corporal, denso: 
na praça, na estação cerrada, 
na moenda que não gira 
para esgotar o suor do corpo.

Não há voos. Só o dos pássaros.
Sem as mãos do petroleiro,
o óleo não brota do mar. 
Da linha de montagem, em silêncio, 
hoje não sairá uma única unidade.

A composição não rola 
sobre os trilhos 
para conduzir os submissos 
ao posto onde consomem 
um dia dentro de outro dia, 
a vida gris que lhes coube. 

Os dedos incontáveis da multidão
de carne, ossos e sonhos prendem
o espesso tecido de nossas esperanças 
que agora se estende sobre a cartografia 
do país: bandeira desatada 
à maneira das chuvas de março. 

Sobe desde a raiz da indignação 
a seiva bruta que alimenta 
o primitivo sentido de justiça 
e nos faz a todos insurgentes 

contra a ordem da delação, da vilania, 
do engano, da traição, da hipocrisia. 
Contra a lógica de choque dos assaltantes 
que nos saqueiam a casa antes que amanheça. 

Sementes de fogo iluminam avenidas desertas.
Contribuem talvez para dissipar a noite 
e suspender a manhã que anunciamos.
Não vamos, em nome da paz, 
- porque não haverá paz para os saqueadores -
domar a vontade de fazer em pedaços 
a república que funda seus alicerces 
sobre o pântano das delações.

Que se liberte o fogo, 
onde o fogo for necessário 
para que ouçam a voz 
dos que sacodem, 
ainda inocentes de sua força, 
as estruturas dessa edificação, 
em véspera de ruína.

Se o ódio é a lavoura do mal 
cultivada no veneno das noites 
 e da amargura, 
a ira é a explosão do espírito 
frente à injustiça. 
Já não há rebanhos de cordeiros 
marchando dóceis rumo ao matadouro. 

Recusamos o destino 
que o olho único do ciclope nos oferece. 
Com as mesmas mãos que hoje paralisam o país
saberemos tecer com fios de espanto 
outros destinos possíveis. 

Não seremos devolvidos à senzala.
Já inventamos quilombos.
Não seremos devolvidos à senzala. 
Já subimos às favelas. 
Já recusamos o cativeiro.
 
Mal aprendemos o sabor da liberdade 
e nos damos conta de que é preciso 
vazar, sem piedade, 
o olho onipresente do ciclope
que nos hipnotiza, nos cega,
nos reduz, nos escraviza. 

Chega o tempo de acelerar 
o impulso das horas 
e dizer ao país que somos 
as mãos que movem as cidades, 
e plantam o grão que nos alimenta. 

Hoje, a palavra se fez gesto. 
E o gesto se fez classe.

Pedro Tierra
Brasília, 1o de Maio de 2017

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