Site gratuito traduz relato de africano que viveu como escravo no Brasil
Site gratuito traduz relato de africano
que viveu como escravo no Brasil
SYLVIA COLOMBO
DE SÃO PAULO
30/11/2015
Mahommah Gardo Baquaqua era
praticamente um adolescente quando desembarcou na costa do Nordeste brasileiro,
em 1845, vindo da África num navio negreiro. Levado a Olinda, passou os
próximos dois anos de sua vida tentando escapar da condição de escravo.
Apanhou, tentou matar o mestre e falhou no intento de suicidar-se por
afogamento no rio Capibaribe.
Por fim, trabalhando para um senhor
que exportava café para os EUA, embarcou num navio para Nova York, em 1847. De
lá, escapou e passou a colaborar com abolicionistas. Também viajou ao Canadá,
Haiti e Reino Unido.
A cinematográfica trajetória de
Baquaqua ganha vida no site www.baquaqua.com.br, que entra no ar nesta
segunda (30/11). Traz pela primeira vez a íntegra traduzida ao português da
biografia que Baquaqua escreveu com a ajuda do irlandês Samuel Moore, e que foi
publicada em 1854, em Detroit.
O site, projeto de uma equipe, é
coordenado pelo brasileiro Bruno Véras, doutorando na Universidade de York, no
Canadá, e orientado pelo especialista em escravidão norte-americano Paul
Lovejoy.
Além da íntegra do texto, que sai
também em livro em 2016, estão no ar vídeos, entrevistas, imagens e relatos.
"O projeto estará em português,
francês, inglês, francês e hausa, que são os idiomas dos lugares por onde
passou. Ser escravo não significava não ter uma individualidade. O Baquaqua
tinha uma identidade, falava vários idiomas, viajou, lutou contra a sua
condição, se relacionou e manteve afetos", diz Véras à Folha.
FAMÍLIA MUÇULMANA
A narrativa de Baquaqua é irregular,
e mostra as dificuldades que Moore teve em compreender e traduzir o relato, e
também transita entre a terceira e a primeira pessoa, o que torna difícil ver
até que ponto o irlandês interveio.
Ainda assim, pode-se entender como
era a sociedade em que ele nasceu (entre 1820 e 1830) no atual Benin, de uma
família muçulmana influente, e ter uma ideia das condições em que os negros
eram transportados às Américas.
Há descrições do Brasil e da vida de
escravo nesse período em que já era ilegal trazer negros para trabalhos
forçados aqui. "Desde 1831 já era proibido escravizar negros trazidos da
África, mas Baquaqua esteve entre os que vieram enquanto essa proibição era
chamada de 'lei para inglês ver'. Ou seja, o Brasil havia cedido a pressões da
Inglaterra para interromper o tráfico, mas não cumpria", explica Véras.
Seus últimos anos da vida são pouco
conhecidos. Sabe-se que embarcou para a Inglaterra, na esperança de poder rumar
de volta para a África. Tampouco se conhece a data de sua morte. Não há
registros sobre Baquaqua além de 1857.
Leia, abaixo, os principais trechos
da entrevista com o historiador norte-americano Paul Lovejoy, autor de
"Escravidão na África" (Civilização Brasileira) e orientador do
projeto Baquaqua.
Folha - Por que publicar esse
trabalho on-line e não apenas tratá-lo de forma acadêmica?
Paul Lovejoy - Com as
histórias de Baquaqua acessíveis, as pessoas podem entender o que aconteceu com
esse indivíduo. Baquaqua foi da África Ocidental para o Brasil e para os EUA,
daí ao Haiti e depois de novo para os EUA, para o Canadá e para o Reino Unido.
Nós acreditamos que ele voltou para a África no final da vida. Ou seja, ele
viajou por todo o mundo atlântico. Com sua história on-line em várias línguas,
estudantes podem acessá-la e professores podem usá-la para combater o racismo.
O projeto faz ver que Baquaqua era uma pessoa, um indivíduo. A escravidão foi
parte de sua história. Ele foi escravizado duas vezes. Depois disso, passou
muito tempo combatendo a escravidão Baquaqua era uma pessoa real. Tinha mãe,
pai, irmãos, tios e tias.
Que particularidades desse texto nos
trazem novos aspectos da escravidão no Brasil?
Nós sabemos que a escravidão foi terrível. Baquaqua foi maltratado em Pernambuco,
quando chegou ao Brasil. Tentou fugir, tentou suicidar-se, pensou em matar seu
mestre. Apanhou muito. A história de Baquaqua reforça que a escravidão foi
terrível, mas mostra que pessoas como ele tentaram resistir e lutar contra ela.
Torná-la acessível online faz com que possamos divulgar a história dessas
pessoas reais e fazer com que se deixe de considerá-las apenas algo a que
chamamos de "escravos". Foram pessoas com coração, dores, amores,
devoção a suas famílias, caráter, força e comunidade.
Qual é a importância do projeto?
Queremos entender a história africana em seu contexto e não apenas como uma
migração de pessoas escravizadas que afetou as Américas. Baquaqua veio de um
importante centro comercial, e queremos chamar a atenção para a complexidade
dessa região, assim como para a sofisticação da sociedade muçulmana africana. A
família de Baquaqua era muito importante no comércio e era muçulmana. Sua mãe
era hausa por cultura e nascimento, nascida em Katsina, uma das mais antigas
cidades muçulmanas da África, que hoje está na Nigéria. Seu tio trabalhava com
prata, ouro e ferro. A família de seu pai viera do Marrocos. Baquaqua foi à
escola, aprendeu árabe. Outro de seus tios era professor, e o irmão, um
conselheiro do rei. Nossa tarefa é fazer com que o contexto africano da
escravidão fique claro.
TRECHOS DO RELATO
"Quando todos nós estávamos
prontos para embarcar, fomos acorrentados uns aos outros, amarraram cordas em
volta de nossos pescoços. (...) Uma espécie de festa foi feita em terra firme
aquele dia. Aqueles que remaram os barcos foram fartamente regalados com
uísque, e aos escravos deram arroz e outras coisas gostosas em abundância. Não
tinha consciência de que aquele seria meu último banquete na África. Não sabia
do meu destino. Feliz de mim que não sabia."
"Disse a ele [ao senhor] que
nunca mais me chicoteasse e fiquei com tanta raiva que me veio à cabeça a ideia
de matá-lo e me suicidar depois. Por fim, resolvi me afogar. Preferia morrer a
viver como escravo. Corri para o rio e me joguei na água, mas como umas pessoas
que estavam num barco me viram, fui resgatado. A maré estava baixa, senão seus
esforços teriam sido infrutíferos."
"Talvez fosse importante notar
aqui que, na África, as nações, das distintas partes da região, adotam
diferentes maneiras de raspar a cabeça e, através dessa marca, pode-se saber
sua região de origem. Em Zoogoo [onde Baquaqua nasceu], o cabelo é raspado em
ambos os lados da cabeça. No alto da cabeça, desde a testa até atrás, deixa-se
o cabelo crescer em três mechas redondas, bem compridas, e os espaços entre
elas são raspados bem rentes. Para alguém familiarizado com os diferentes
cortes de cabelo, não há qualquer dificuldade em saber a que lugar um homem
pertence."
FONTE: Aqui
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